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A Chinesa

 


Desabava água do céu naquela noite em Florianópolis. Era um flat daqueles limpinhos, modernos, confortáveis e com diárias baratas.Mas do tipo self-service, nos quais não há nem um sujeito para carregar a mala da gente: vire-se por conta própria. Larguei as malas no quarto e desci para a recepção, louco de fome. Também havia outras intenções, meio “sórdidas”, entendeu? Chamei o recepcionista no canto do balcão.

 

Preciso da indicação de um lugar. Um lugar para jantar, mas que tenha moças para se ver, entendeu? Um lugar para me distrair... – tentei fazer uma cara de safado.

Que tipo de lugar o senhor gostaria? Uma boate, para dançar? Hoje é segunda-feira e está chovendo muito, acho que não tem nada de muito bom...

Aquele catarina da recepção não entendera que eu procurava uma boate com putas e, para completar, ainda me perguntava em voz alta, chamando a atenção dos outros hóspedes. Um coroa com cara de respeitável-hipócrita, daqueles que quando lhe perguntam a profissão respondem “presto consultoria”, folheava um jornal aberto sobre o balcão e prestava, sim, era atenção à minha conversa. Já que só havia homens ali, eu resolvi chutar o balde de uma vez.

Putas. Eu quero comer num lugar cheio de putas em volta, entendeu?

O recepcionista então me pareceu meio ofendido e o coroa do jornal não piscava e nem me olhava, certamente me achando um inconveniente. Ele, claro, não estava lendo porra nenhuma naquele jornal. O recepcionista começou a folhear as páginas amarelas de um guia telefônico, quem sabe procurando o que eu queria na letra “P” de “putas”. Pouca prática, ele.

Foi quando a Chinesa saiu do elevador e passou por mim, de vestido preto, no seu passo marcial. Ela passou de perfil e por isso enganei-me pensando que fosse uma japonesa; confusão de origens que muito a irritava. Por não reconhecê-la, achei que era uma bela japonesa. Que jamais prestaria atenção a mim. Não meto medo em homem algum; não atraio qualquer mulher. Só depois de eu falar um pouco é que isso, às vezes, acontece, com homens ou mulheres, nessa ordem.

A Chinesa foi até a frente do hotel, olhou para a chuva, e voltou. Quando ela voltou e olhou-me de frente, afinal, nos reconhecemos.

Pensei que fosse uma japonesa bonita. E é uma chinesa. Linda. Mas o perfume é japonês: Kenzo. 

Achei que você já não se enganasse mais comigo - ela me disse, sorrindo. – Você lembra até do nome do meu perfume. 

Seus lábios eram muito grossos e estavam pintados de vermelho, fortes, bem contornados. Os olhos ainda mais apertados. Ela estava sem os óculos, mas certamente usando lentes de contato.

Você está sozinha em Florianópolis? A gente podia comer ou beber alguma coisa, por aí – a chuva caía forte, o que não podia ser melhor para os planos que eu tracei, naquela mesma hora, para mim e para ela.

Sozinha. Mas, como você sabe, eu estou vivendo com o Baptista há quase três anos. E está dando certo. Portanto, nada de ideias bobas. A nossa história já era. Eu agora sou séria e casada.

A segurança não é o forte de vocês, mulheres. Você parece ter mais medo de si mesma do que de mim. Eu falei alguma coisa? Você pode ter um amigo; comer uma pizza e beber um chope com ele, sem deixar de ser “séria e casada” - eu disse aquilo à Chinesa com ironia e já quase desistindo da noite ao lado dela. Achei que não sairia coelho daquele mato. “A nossa história já era”, ela me disse.

Pode destilar o seu veneno de sempre. Você já me conhece. E conhece o Baptista. Uma pizza e um chope. Só. 

 

Fiz um gesto para o recepcionista cancelar a sua busca nas páginas amarelas.

Eu conhecia a ela, sim, de todos os jeitos possíveis. E um dos seus jeitos era não combinar com o sangue oriental, para desespero dos pais, chineses tradicionais. Eles queriam que ela se casasse com um chinês. Ela queria um homem brasileiro e safado. Nunca foi garota de programa, mas sempre me dizia – geralmente no motel – que queria ficar rica, abrindo um bordel de orientais: chinesas; japonesas; coreanas, tailandesas. Que faria muita grana, assim, aproveitando o fetiche dos brasileiros. Como uma cafetina oriental de luxo.

Eu também conhecia o Baptista. Bonitão, forte, metido em muita coisa feia. Traiçoeiro. Perigoso. Burrão. Eu não sou bonito nem forte. E nem burro. Por todo o resto, sou igual ao Baptista. Homem bonito e forte geralmente é burro, pois não precisa pensar muito. Basta circular, aparecer. Por isso não circulo muito, sou feio.

Fomos a uma pizzaria de tijolos à vista, na Beira-Mar Norte. Chovia forte ainda. Comemos a pizza sob o olhar cobiçoso de uns tipos cariocas, que falavam chiado; únicos freqüentadores além de nós, sentados numa mesa ao fundo. Uma chinesa de vestido só chama a atenção dos corvos.

- Agora eu quero dançar um pouco - ela me disse.

Que seja - É bom conseguir fazer as vontades de uma mulher bonita, você se sente meio poderoso, forte. Saímos procurando, em vão, um lugar para dançar numa segunda-feira de chuva, em Florianópolis, fora da temporada de verão.

Enquanto andávamos de carro, ela pôs a mão na minha nuca.

A gente já fez tanta besteira, juntos, né? – ela me perguntou, sonhadora.

Muita - Eu disse, triste, com aquela sensação de solidão numa noite triste e ventosa, de que nunca mais fosse ter aquela mulher na vida. Uma sensação horrível de fim dos tempos, de cataclisma - E, olha, se você vive com o Baptista, e me disse que agora é séria, tira a sua mão daí. Mesmo assim ela não tirou a mão da minha nuca. E eu fiquei feliz. Feliz de verdade.

Não havia onde dançar, na Cidade. Cogitamos até de ir dançar num puteiro, mas desisti. Eu fatalmente arranjaria confusão grossa com os freqüentadores se entrasse com a Chinesa num puteiro. Voltamos para o hotel, para assistir um filme na TV a cabo e comer chocolate. “Só isso”, ela me alertou.

Estava hospedada uns dois andares acima do meu. Fomos para o quarto dela, assistir à TV e comer chocolate. Só isso. Pedi licença para ir ao banheiro e voltei nu. Meti-me debaixo das cobertas. Ela riu. Não se surpreendeu. Nunca foi uma mulher muito assustada com os homens.

Eu não preciso ter vergonha de você, já fiquei pelado na sua frente antes. Estou com calor.

Você se sente só? Não sente amor por alguém? - ela quis saber.

Muito só – eu respondi olhando para a TV, olhos brilhosos – há dias em que me falta o ar, como se eu fosse um asmático e não encontrasse a “bombinha” que me ajuda a respirar – eu estava sendo incrivelmente sincero. - O amor que eu tinha já secou.

Secou mesmo?

Secou.

Ela sorriu e passou a mão no meu cabelo, pondo ele para trás da orelha. Era mesmo verdade que eu me sentia só e ela acreditou em mim. Eu já estava duro, debaixo do lençol. Nos jogamos um contra o outro com sede e fome. Sem uma palavra. Não havia amor; nem emoção; nem ternura; havia o Baptista e acho que sequer haveria uma outra vez entre eu e ela. Chovia em Floripa. Mas esse amor manco me quebrava o galho. Ela era a “bombinha” para o asmático, que era eu. Dormimos. Lá pelas quatro e meia da manhã me surpreendi abraçado nela, de conchinha, os dois sem roupa. E eu duro, claro. Entrei de novo no corpo da Chinesa e tudo recomeçou, com cara de sono e hálito de sexo oral feito em noite mal dormida; nossos sexos ressecados e ainda sem banho.

De manhã bem cedo ela tinha compromisso e também estava na hora de eu dar o fora de Florianópolis, por “n” razões. Tomamos café juntos no salão do hotel e ela, antes de sair, enfática e fria, disse

Não me procure nunca mais.

Uma mulher nunca tinha sido tão incisiva assim comigo, na vida. “Não me procure nunca mais”, como quem diz “sai, cachorro, pra rua!”.

Saí do hotel acompanhando a Chinesa até o táxi. Fechei a porta do carro onde ela embarcou e fiquei olhando, meio triste, o táxi se afastar. Mais uma “bombinha de asmático” indo embora de mim. Por algum tempo eu não precisaria de uma dessas.

Foi aí que eu vi, do outro lado da rua, o Baptista - de camisa preta - me olhando com um sorriso de maldade. Mexia os braços, contraindo os músculos fortes, como um pavão que exibe as penas para impressionar os pássaros comuns. Não havia para onde fugir.

Encostei-me num carro estacionado no meio-fio e fingi me coçar, roçando as costas no espelho retrovisor. Na verdade enganchei no espelho a trava da pistola semi-automática que eu levava na parte de trás da calça, destravando a arma com um único movimento e sem usar as mãos.

Esperei o Baptista atravessar a rua, pois sabia que ele viria. Não meto medo em homem algum; não atraio qualquer mulher.

 

(do livro de contos O Romance dos Comuns, inédito em português - já publicado em espanhol, ebook)