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Mi Negra Soledad

 

 

- Tem alguém me esperando, aí fora, Clarice?

- Tem, sim. Mando entrar?

- É homem?

- Um homem e uma moça.

- É um cara magrinho, com um bigode?

- Isso, Doutor. E a moça é uma moreninha.

- Uma moreninha?

- É, uma morena, alta. Bonita.

- Uma negra?

- É. Uma negra.

- Manda o homem esperar. Espera cinco minutos e pede à moça que entre. Ela pode passar direto, não precisa avisar.

- Certo.

Clarice saiu da minha sala. Levantei-me e fui até o banheiro, lavei as mãos e espremi uma boa porção de sabonete líquido nelas. Apanhei o perfume no armário e borrifei um pouco no pescoço. Passei um pente no cabelo. Olhei os dentes no espelho. Estavam bons. Fechei o armário. Abri de novo. Peguei uma dose de antisséptico bucal e bochechei. Abri a porta do banheiro e voltei para a sala.

A moça era Soledad, filha de um músico cubano que veio parar aqui na década de 60. Nome de personagem de novela mexicana que significa Solidão. Não tinha nada a ver uma coisa com a outra, mas sempre que eu pensava nela escutava o Fito Paez, que é argentino, tocando o piano, todo descabelado.

Ela já estava sentada na cadeira em frente à minha mesa. Com a bolsa no colo. Olhava-me com olhos acesos. A pele fresquinha, brilhosa. A boca e o nariz dela pareciam feitos de chocolate.

- Tudo bem? – perguntei, sincero e conciliatório. Não gosto de momentos de fúria, de desavenças. Isso sempre me fez mal.

Ela mediu bem as palavras. Disse-as soletrando calmamente, mas com lágrimas nos olhos. O branco dos olhos dela palpitava contra a pele negra.

- Você é um grande hijo de puta, né? Nada está bem.

- Soledad, aqui não é bom a gente conversar essas coisas. Calma. Quem sabe a gente conversa em...

- Não vou a outro lugar. Já tentei antes e você não atende ao telefone. E eu não levantei a voz. Estou falando num tom de voz que só você escuta.

Inteligente e bonita. Unhas pontudas e vermelhas. Parece uma ironia de minha parte dizer isso, mas mesmo com os palavrões ela costumava ser educada, polida. Porém extremamente ácida, nos seus julgamentos. E xingava um pouco em espanhol, língua paterna.

Ela uma vez referiu-se a um amigo meu como alguém que era “nojento de tão tímido”. Dizia que a dele era uma timidez “penetrante e surdo-muda” que o impedia de ir à praia; ao cinema; dançar (Carnaval nem pensar!) e principalmente de falar em público, ainda que esse público fosse composto por duas pessoas que lhe encontrassem na rua. “Uma pessoa dessas”, Soledad bramia inconformada e pejorativa, “é alguém que autoriza que lhe caguem na cabeça. E, se você quer saber, tem mais é que cagar mesmo. Uma ameba, un cosaun mierda”.

Eu já a tinha visto referir-se a outras pessoas de quem não gostava, além do meu amigo, assim, como “um coisa, um merda”. Não sei até se já não fizera isso em relação a mim mesmo, sem que eu soubesse, pelas minhas costas. Agora ela me xingava, ali, na minha frente e no meu trabalho, sem rodeios.

- O que foi que a Clarice lhe disse a meu respeito, quando eu cheguei?

- A Clarice?

- É, a Clarice, a secretária.

- Não disse nada. Disse apenas que havia uma moça e um cara esperando por mim.

- Uma moça? Ela disse assim mesmo, “uma moça”?

- Isso. Disse “uma moça”. Qual o problema com a Clarice, agora?

- Nenhum, falei várias vezes com ela por telefone. E ela sempre me tratou muito bem. Mas hoje tive a certeza de que ela não esperava, pela minha voz, que eu fosse uma moça negra.

- Não começa, Soledad...

- E você, com esse seu narigão vermelho e empinado, certamente esperava que eu completasse agora “sou negra mas não sou burra”, mas eu não vou lhe dizer isso. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Vocês esperam sempre que a gente corresponda ao estereótipo.

- Não tem mesmo uma coisa a ver com a outra. Mas não entendo essa conversa de "vocês" agora, o nosso assunto aqui é outro. Aqui nunca teve esse papo de racismo.

- Não, claro que não.. – irônica - Você não nasceu negro e nem filho de um artista.

- Quem me dera...

- Chega. Não precisa iniciar o papinho de entrevistador de televisão na linha “quem me dera ter nascido negro e com esse talento”. Hipocrisia e nariz, isso você tem de sobra.

- Essa porra sobre o meu nariz está me irritando. Está me magoando.

A conversa parecia uma retrospectiva dos piores momentos. O racismo no Brasil; o meu nariz grande; o pai músico dela. E fugia do que realmente interessava.

- Não vou lhe magoar e nem irritar mais. É a última vez que você está me vendo de perto. Eu não venho mais aqui, você não precisa mais me procurar.

Aquilo me causava uma tristeza abafada, sem solução. A gente realmente sente quando alguém vai embora e não volta nunca mais. Aquele não era um momento para decidir as “definitividades” da minha vida. Mas eu não queria me afastar de Soledad.

- Eu te amo... – disse-lhe num gesto de braços abertos, mistura de resignação com inconformidade. E disse aquilo a ela com os olhos tristes de um cachorro que acabara de escavar o jardim da sua dona, pedindo desculpas.

- Se amasse, não tinha feito o que fez.

- Amo.

Quando disse “amo” involuntariamente cerrei os punhos, de dor. Como sempre faço quando estou nervoso. Já me peguei assim no cinema; num show; jogando futebol; ouvindo o Fito Paez.

Fiquei com vontade de cravar-lhe os dentes na bochecha ou na nuca, como ela gostava, mas não me mexi na cadeira. Não tive coragem.

- Senta no meu colo.

Ela olhou bem firme para mim, levantou-se de onde estava, veio até mim e sentou-se no meu colo. Mas não havia qualquer obediência no seu gesto. Ela quis fazer aquilo.

Beijei seus olhos, sua boca, sua cabeleira crespa que eu tanto adorava. Sua língua estava quente e molhada. Ela estava indo embora de verdade. Ela olhou fundo nos meus olhos. Levantou-se do meu colo. Eu levantei da cadeira, chaveei a porta da sala.

Não dissemos uma palavra. Ela curvou-se sobre um balcão e me olhou mais uma vez. Levantei o seu vestido e baixei-lhe a calcinha. Entrei de uma única vez no seu corpo. O mesmo calor e a umidade da boca. O amor não ia explodir, ali, até o fim, porque não haveria tempo. O amor naquela hora era apenas uma fusão rápida e fugaz; era só um querer mais do que um simples abraço. Era a nutriz; a força; a chuva dela que caía sobre a minha terra pela última vez. Só isso. Sem gôzo, sem gemidos e, dolorosamente, sem palavras.

Ajeitou o vestido azul e saiu. Cumpriu a sua promessa. Depois que ela fechou a porta nunca mais nos vimos.

Gosto, desde então, de imaginá-la como uma menina, justamente porque é uma mulher. Vestidinho azul, leve, cheio de florzinhas, tal como na última vez em que a vi. É uma imagem de sonho, uma imagem de filme. Mas é uma menina. Especialmente porque é uma mulher.

E porque me lembro dos seus olhos inocentes e negros, que são meio tristes e ela nem percebe. Lembro disso como quem se lembra de uma coisa bruta e artesanal; vaso de argila pintado de várias cores, ou um guardanapo de crochê cheio de floreios e de pontos; ou um bolo de cenoura quentinho, coberto por uma calda de chocolate, numa tarde de inverno rigoroso e distante.

É para ser uma imagem idílica, a dela, delicada, translúcida.

É, essa imagem, tudo o que eu gostaria que ela fosse, e que talvez ela seja na realidade, mas por não saber, acaba por não se torná-lo. E penso que a falta de contato comigo acabe por afastá-la completa e definitivamente disso. Não porque eu vá deixar de pensá-lo ou de sabê-lo, porque para mim isso hoje é uma verdade minha. Incontestável.

Mas porque temo, sinceramente temo, que ela volte a ser exatamente o que era antes de me conhecer. Entrar no meu mundo a tornou alegre, mas também lhe tornou um pouco triste, porque lhe dei a conhecer a si mesma e a tornei exigente em relação às suas próprias coisas, em relação ao que fora antes de mim. Ou tornei-a exigente, mas com as minhas exigências.

Despi aquela mujer negrala cubanita, do seu verniz original. Então, agora, tento devolvê-la, ainda alegre, ao que ela era antes de me conhecer.

O problema, com isso, ela voltar a ser o que era, é que passo a deixar de existir. Volto, pois, para o mundo que criei e de onde saí apenas para sonhar e fazê-la sonhar um pouco do que era meu. Morro, pois. E renasço de uma outra forma. Como uma estrela. Alto, distante. Estrela.

Nada mais do que isso.

 

(do livro de contos O Romance dos Comuns, inédito em português - já publicado em espanhol, ebook)