Tarde de calçadas cheias, nos cafés de Buenos Aires. Os dias têm sido generosos, com todos nós, nesta época do ano. Até o imenso portão de ferro do Círculo Militar se torna um rico broche lavrado.
Isabela, a uma hora destas, deve estar em casa.
O sol gosta de pintar umas coisas bonitas, nesta cidade. Tomar um trem e ir até o Delta, percorrendo todo o caminho. As estações passando pelo trem, coloridas, como num filme calmo e bom. Maipu, Borges, Libertador, Las Barrancas, San Isidro, Punta Chica, Marina Nueva, San Fernando, e, finalmente, o Delta.
O sol parece que queima, nesses meses, mas nunca queima. Ele doura. Sento-me numa mesa perto de uma árvore e fico olhando em volta. Torno-me a árvore, ninguém dá pela minha presença e nem eu quero isso. Realizo a fotossíntese, clorofila, e todas aquelas coisas que a gente aprende no colégio. É bom vegetar, assim. Em silêncio, anônimo, sem que alguém – nem mesmo o homem que pede esmolas ou o menino que diz "cuidar" dos carros sentado junto ao meio-fio - dê pela gente. Sem que alguém faça a mais remota idéia do farelo de gente que somos, neste pacote de biscoitos que é a Humanidade.
Isabela provavelmente tomou banho e está nua, enrolada numa toalha ou num roupão. O seu corpo, com todas aquelas voltas e reentrâncias e pêlos e umidades nos lugares certos, cheira a sabonete. Uma fêmea. O sol da tarde entra pela janela, no seu apartamento antigo. As coisas, lá, estão todas nos seus lugares. Uma cadeira de armar onde eu me sentei, fumando, emocionado e excitado pelo porvir. Roupas esticadas nos fios de nylon do varal na área de serviço. Vários CD empilhados, sem ordem alguma.
Na porta da geladeira há imãs engraçados. Dentro dela, vinho branco e refrigerantes. Um pedaço de torta. Ovos, uma salada cor verde-claro. Nos armários, louça branca com fios dourados nas bordas. Talheres de aço inoxidável brilhantes, novinhos.
Ela ouve um samba antigo, e fecha os olhos, cantarolando, sentada na cama. Quem sabe ouça Pirata Azul, a música do João Bosco, num CD antigo que eu lhe dei de presente. Ela prefere ouvir os brasileiros, e mal entende a língua. A sua cama tem um colchão grosso, alto, cheio de molas e revestido de lençóis limpos que, com toda a certeza, estão bem cheirosos. Sabão em pó, amaciante de roupas.
Os vidros das janelas do apartamento de Isabela são originais. Estão lá desde a sua construção. Os donos, vários, que se sucederam ao longo dos anos, foram caprichosos. Nenhum vidro quebrado, em décadas. São vidros imperfeitos, a luz não os atravessa uniformemente, fraciona-se de encontro a eles. Vidros de garrafa; vidros de botica, dos antigos farmacêuticos de um século no qual não vivi. Eles distorcem as imagens e, no entanto, são tão lindos quanto caleidoscópios.
Isabela está sentada sobre a sua cama alta. No móvel laqueado do quarto; um quarto no qual ainda existem móveis laqueados, muitas coisas fazem uma neutra e silenciosa companhia a ela. São potinhos de cremes hidratantes, frascos lavrados de perfumes com nomes franceses; velas; cachepot; um São Francisco de gesso, sem pintura, que alguém lhe trouxe do Brasil. Um dia eu morri de ciúmes desse São Francisco de gesso, sem pintura, trazido do Brasil, para Isabela. Quem tinha o direito de trazer algo assim, para ela, de uma viagem, senão eu?
Ela está sentada, sob a cama. Nua, eu já disse antes. As pernas dobradas, ao lado do corpo. As unhas dos seus pés não estão pintadas. A música. Agita um secador grande e barulhento, sobre os cabelos molhados. Suas mãos ossudas, firmes, se crispam, no cabo do eletrodoméstico. Mãos que seguram - ou arranham, conforme a hora - também o corpo de um homem, com paixão. Eu sei.
Ao lado de Isabela, no chão, sobre o tapete azul e peludo, está a toalha, agora amontoada e úmida. Sobre o travesseiro, uma calcinha azul-claro, minúscula, esperando para ser vestida e cheirando a sachê, que há menos de meia hora estava na gaveta com outras coisinhas do gênero e fitinhas e também com algumas meias de nylon; duas ou três delas desfiadas mas ainda em condições de uso. Uma calcinha que vai entrar pelo meio das suas pernas e acalentar o seu sexo.
Talvez haja, aceso no quarto, um incenso com um aroma exótico: almíscar; sândalo; as cerejeiras do Japão Imperial; laranjas.
No porta-revistas, uma revista de decoração. E outra de moda, Vogue. No banheiro, enfiada num círculo de aço inoxidável, uma toalha limpa e macia, verde-limão ou rosa; cores felizes e lindas, que mereciam pelo menos um raio de sol entrando pela basculante e as iluminando.
Suspiro.
Acontece que no banheiro, também nu, um homem com o corpo cheio de pelos ensaboados, toma banho e assobia uma música vulgar que não combina com nada daquilo. Rude, limitado, burro até. Mas um homem. E esse homem, infelizmente, não sou eu.
Eu estou aqui. E vegeto, como uma árvore, ao lado da própria, sentado e anônimo, na mesa de madeira marchetada e entalhada de um café portenho.
Há passarinhos.
(do livro de contos O Romance dos Comuns, inédito em português - já publicado em espanhol, ebook)