Sinceramente, hoje eu quero mais é que Jaqueline vá para os quintos dos infernos com a sua nova vida conjugal e se ela não encher o meu saco já está de bom tamanho. Que se foda. Não estou nem aí. Pinte-se de ouro, ou de vermelho a sua bunda redondinha e firme, Jaqueline, e desfile em carro aberto, na avenida; sozinha ou acompanhada; realizada e satisfeita da vida. Divulgue-se, Jaqueline. Diga que está feliz; que injetou silicone nos peitos. Que comprou um carro novo ou que ganhou uma medalha de ouro no seu trabalho. Que teve um filho. “Hoje eu sou feliz, o mundo é lindo, meu namorado/marido é lindo, estou realizada e próspera, vivo hoje tudo o que eu sempre quis”. Uma beleza, se isso acontecer.
Quem fica penhoradamente grato a ela, e à vida, ou ao Destino, ou ao Universo, sou eu. Assim ela me deixa em paz e não pensa besteira. Besteira envolvendo a mim, principalmente, querendo foder com a minha vida.
Cansei desse romance com ela, realizado ou imaginário. Verdadeiro ou subliminar. Cansei daquele nosso romance enjoadinho.
Entre tantas idas e vindas, pensamentos e reflexões; versos e sofrimentos; cartas e gritos estridentes e brigas entre nós. Telefones batendo um na cara do outro, furiosamente. Xingamentos rancorosos e declarações implícitas de amor eterno. “Te amo, mas não podemos, vou te amar assim mesmo; vou te amar pela vida afora”. Sei não, sei não. Será que vai mesmo? Pensar que um amor daquele tamanho; que parecia infinito, acaba por enjoar tanto quanto uma música que toca repetidamente no rádio e que no inicio emociona, mas que depois se torna um tormento insuportável.
Talvez um amor desses seja mesmo infinito, quem vai saber? Não vou discutir o mérito disso. É difícil acreditar que se chegue a esse ponto quando sempre me lembro que no corpo dela eu entrei, perdi a conta do número de vezes, como se estivesse morrendo no frio mais congelante e o seu calor; o calor do seu útero - interno, fluido e úmido - fosse o único que pudesse salvar a minha vida miserável e assim a salvava mesmo, por alguns esmolados e intermináveis minutos.
Esse amor, ou o nome que se dê a esse negócio, fica lá, guardado, na cabeça da gente, sem utilidade alguma a não ser lembrar do que aconteceu e que não vai voltar nunca mais. E lá vai ficar, paciência, e vamos em frente porque a fila anda e a vida é curta, é o que dizem. Já somos outros, agora. Não mais aqueles dois.
A droga é que sempre se busca a mesma coisa, repetidamente, na vida. A Filosofia simboliza o Eterno Retorno na figura do Oroboro, que é uma cobra (ou um dragão, sei lá) mordendo o próprio rabo.
Assim Falou Zaratustra, na Gaia Ciência. O trecho está sublinhado no livro que eu tenho lá em casa. Um livro que comprei num balaio de saldos de uma livraria chinfrim, dessas onde o dono é um vagabundo que não gosta de trabalhar, mas que faz pose de intelectual: E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: "Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência - e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez - e tu com ela, poeirinha da poeira!". Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim?”
Eu sublinhei o trecho. Eterna confirmação, ô Zaratustra, é o caralho. Cansei disso, entendeu? O meu romance com Jaqueline não é mais aquela dor aguda do início. Passou essa fase. Agora é apenas um incômodo; um repugnante enjôo. Um negócio que eu não quero mais ter.
Ainda mais num mundo como este, onde as possibilidades são muitas. Muitas e diferentes. Só fica enamorado e sofrendo inutilmente quem quiser. Foi-se o tempo romântico da contemplação e da autocomiseração; o poeta Augusto dos Anjos e o seu discurso da dor.
Olhava para Luíza, a argentina, ali, deitada ao meu lado, completamente pelada; pêlos pubianos negros, suspirando de paixão, ou por causa do nosso tesão recém-saciado e prestes a ressurgir. Eu, ali, lasso. Ela, menos cansada; mais emocionada, pela minha presença. Emocionada pela minha simples presença. O que mais um cara todo falhado; mal acabado, como eu, pode querer dessa porra da existência? Fui em frente, Jaqueline. E aqui está a cobra mordendo o rabo, novamente. Assim vale mesmo a pena morder o rabo, cobra. Não naquela roda-sofredora; impertinente; de amor angustiado, prestes a explodir a toda hora, que eu vivia com Jaqueline. Uma Jaqueline que, por ironia e desmentido da tal eternidade do amor, hoje está a léguas de distância – física, mental, afetiva - de mim.
Ah, Luíza. Morena clara; pele bem branquinha; um metro e setenta; cabelos pretos e sedosos como um mar de petróleo; lindos, crespos. Uns cinco anos a menos do que a idade de Jaqueline e uns dez ou doze a menos do que eu. Champanhe gelado, nas taças. Música. E ainda me querendo muito; sem grilos e sem gritos. Sem telefonemas batendo na cara; sem encheção de saco. Sem correntes arrastando. Sem gritarias, sem vulgaridades.
- Você conhece a teoria do Eterno Retorno, Luíza?
- Nunca la vi mas gorda. Lo que es? – me perguntou em portunhol, sonolenta.
- Uma cobra mordendo o próprio rabo.
- Una culebra?
- Si, una culebra. Pero nada importante, flaca. Duerme, mi amor.
- Hmmm - dizia "está bien" e dava uma risadinha, divertida.
Gosto de brincar com a língua de Luíza. Com as duas. A língua de carne que ela tem na boca e que passa no meu corpo com uma paciência de gata, lenta, molhada, quentinha, deixando-me tesudo e doido. E a língua que ela fala; pronuncia, quando me diz coisas bonitas. A língua espanhola dela. Uma língua antiga, boa, delicada, que lapida e se emociona, que diz coisas que não se diz aqui no Brasil, com este nosso português vulgar.
- A palavra "vaga-lume", Luíza, como se diz em espanhol? – Eu pronuncio “Luíssa”, à moda espanhola. Ela gosta disso, ela se deleita, os olhinhos dela brilham. É um prazer para a sua alma, percebo. Ou uma homenagem. Como se eu, ao dizer aquilo, me jogasse no chão para ela passar por cima de mim com os seus pés branquinhos e macios. Uma coisa assim.
- “Vaga-lume” es “luciernaga”.
- “Luciérnaga”?
- Si, luciernaga.
- Que lindo. “Vaga-lume” é tão feio. Prefiro “luciérnaga”. Como no bolero do Luiz Miguel, quando ele fala em “luciernaga curiosa”. Eu queria ser uma “luciérnaga curiosa” pra iluminar você. Todos os seus cantinhos.
Ela sorri, como quem admite que eu já a ilumino.
Às vezes, estando com Luiza, não sei se estou vivo ou se estou morto. Estar morto, nesse caso, não é algo tão ruim. Pelo contrário. É o limbo; a ausência de dor; o entorpecimento da existência; o mergulho numa piscina cheia de gel viscoso. Ouro; incenso e mirra; a suprema experiência do corpo e, principalmente, da alma. Deus, o Velho, ali, com a mão sobre a minha testa, como se fosse um pastor picareta numa igreja vagabunda de bairro cheia de pobres e de bancos de madeira velhos e descascados. Não mandando-me levantar e andar, mas - ao contrário – estimulando-me a ociosidade e dizendo para eu ficar deitado e curtir a luxúria. “Goza, meu filho”, de preferência umas três ou quatro vezes, ou o quanto eu agüentasse. Duas, no máximo, é aonde eu chego.
Mas já está de bom tamanho. Deus limitou a minha atuação.
(Conto escrito entre maio e agosto de 2008 - do livro de contos O Romance dos Comuns, inédito em português - já publicado em espanhol, ebook )