O motorista do pai chegou e disse, “pronto, este é o endereço do homem”, entregando o papelzinho verde, dobrado em quatro, na mão dela.
Ela perguntou ao motorista se ele tinha certeza. O motorista se chamava Silvio e ficou meio ofendido, dizendo “eu sou pobre mas não sou burro”, demonstrando um orgulho pobre e meio burro, pois ela não havia dito que todo pobre era burro, apenas perguntou se ele tinha certeza, qualquer um poderia ter se enganado.
Deixa eu confirmar então, ela pediu. “Deixo”, ele disse, e saiu falando “eu carreguei esse homem umas quatro vezes no carro do seu pai, eu não me esqueceria dele. Ele está bem diferente, agora está bem pior do que eu”, ironizou, “mas é ele sem dúvida nenhuma. E ele continua com aquela mania de fazer bichinhos de batata, com o canivete”.
Totens, ela disse ao motorista.
“Isso”, ele concordou, e disse “aqueles números que eu anotei ali embaixo para a senhora são o horário em que ele desce no ponto do ônibus quase em frente à casa, todos os dias, e o número da linha do ônibus. A senhora vai levar a polícia junto, não é? Aquela região pode ser meio ruim para alguém” – vacilou – “como a senhora”. Ela se mostrou espantada e respondeu “é claro que não, mas o que é isso, ele não me fez absolutamente nada de mal, porque eu levaria a polícia?” O motorista respondeu “ah, sei lá, pensei que ele lhe devesse alguma coisa”, e pegou rápido a nota de cinqüenta que ela lhe deu em troca do papel. Ela agradeceu e disse a ele: pode ir, Sílvio.
Sentou-se no murinho baixo que circundava o jacarandá no pátio enorme que havia na casa do pai. O pátio agora, na Primavera, estava acarpetado de flores que a árvore jogava como confete aos moradores, mas que também cobria os pára-brisas dos carros e entupia as bocas-de-lobo dos esgotos no chão, quando chovia.
Olhando para o papel verde com o endereço do homem, que era o Passado, sem ao menos conter o nome do dono, pensou em como o dinheiro, ou a falta dele, podia modificar irreversivelmente a vida ou o afeto das pessoas, ou mesmo sufocar esse afeto e se tornar um incômodo, inundar tudo, fazer água, como um cano de esgoto entupido pelas flores.
Não alimentou, no passado, qualquer esperança em relação àquele homem a não ser o momento que os dois viveram sob o signo do dinheiro. Mesmo assim, hoje, ela não entendia aquele afastamento de ambos por causa da chamada “situação financeira”. Havia sido estranha aquela semente de afeto enlouquecido, lançada à terra sem a espera pelo germinar, lançada de qualquer jeito, mesmo sem qualquer esperança numa colheita, mesmo que uma colheita minguada. Mas não esperava que a falta de dinheiro dele fosse afastá-los.
Ela lembrou de quando caminhava, com os olhos parados e tendo na boca um sorriso estático, pensando na vida que não viveria no futuro com o homem eleito. E em como isso não lhe importava nem um pouco, embora pudesse querê-lo pois estavam, então, socialmente colocados no mesmo pódio. Sem futuro, viveram breves e perenes instantes onde sorveram um no corpo do outro o desespero da paixão urgente. Fizeram isso para não amargarem a frustração eterna de, um dia, velhos, morrerem de forma idiota, num tranqüilo lugar qualquer, sem terem vivido aquilo.
A figura dela é meio barroca: pálida, jovem, muito jovem. É magra e de negros e crespos cabelos, nos quais faz rolinhos com o dedo indicador. Diante dele, ou nos braços dele, era porcelana nas mãos de um estivador.
Um homem que, mesmo rico, estava longe de ter uma boa procedência, de portar-se com elegância.
Assim mesmo, a boca rósea dela era um naco de carne macio, ansiando pelos beijos daquele homem mais velho que, há apenas um incrível ano, vestia um impecável summer em festas dadas à beira de alguma piscina elegante, feito um bonequinho desenhado num cartão de Ano Novo. No entanto, ela, naquele tempo, estava feliz com a idéia acertada e indiscutível de que alguém se lembrava dela, associando-a a um posto de gasolina ou a um supermercado, a uma determinada rua ou a um bar onde ela, por costume, bebia café.
Gozava, pois, o prazer que dá a qualquer pessoa a certeza de ser lembrada por alguém, como se fosse uma artista, como se fosse um ídolo fazendo um comercial de cerveja, de quem todos se lembram, ao olharem o rótulo da bebida. Pensava, no seu romantismo exagerado, que pouca gente desfrutava daquilo, que era uma bênção ser lembrado de forma tão associativa a lugares públicos, a coisas, a objetos. Um prazer como poucos. Existo, pois, para ser lembrada, ela pensava naquele passado recente, e pensava também que, quando ele passasse por aquele supermercado, uma fisgada ou um frio na espinha dele anunciariam a presença dela. Ela poderia estar ali, nas imediações, ou ali se encontrar em breve, por ser um dos lugares dos seus hábitos e ele saberia perfeitamente disso. Agradava-lhe, naquela época, sobretudo, a idéia de que aquele pensamento era uma certeza.
Ele próprio confirmou isso, várias vezes, por carta ou por telefone. Ele disse a ela “sabe, eu penso em você, toda vez que passo por lá”. Muita gente se ilude ou tem nisso uma esperança vã. Não ela. Para ela foi uma certeza, uma certeza confirmada, ainda que absolutamente sem futuro. Acreditou, feliz, que nunca, em nenhuma outra época da sua vida, alguém havia pensado nela com tamanho amor, com obsessiva devoção, com a sofreguidão de um desejo do corpo e de palavras.
Tinha sido, ali mesmo naquele murinho sob o jacarandá, às cinco horas da tarde de um outono que se foi, uma pessoa plena de pequenas mas importantes certezas.
E o motorista do seu pai, agora, havia lhe trazido o endereço daquele Passado.
O Passado, quando era presente, já não trazia a nenhum dos dois qualquer esperança. Agora o Passado era apenas o passado, mas ela fazia questão absoluta de ir vê-lo assim mesmo, pretérito. Confirmar-lhe a irreversibilidade, ainda que lhe custasse a dor que traz aos amantes saberem que já não são, mas que simplesmente foram.
Tendo tais pensamentos em sua mente, ela entrou no carro e, de olho no relógio, dirigiu até o lugar indicado no endereço trazido pelo motorista. Estacionou o carro e esperou não por um, mas por cinco ou seis ônibus daquela linha e, no quinto ou no sexto ônibus, o Passado, enfim, chegou.
Não mais aquele Passado elegante. Ele desceu do ônibus aparentemente cansado, com uma barba mal cuidada. A calvície charmosa, à custa do creme que ele usava antes nos cabelos restantes, era agora meio patética, desgrenhada e decadente. Era um Passado barrigudo, vestindo roupas baratas compradas com o cartão de crédito em algum magazine popular, um cinto com furos gastos e sapatos baratos, ainda que obsessivamente engraxados. Um Passado surpreendente e legitimamente pobre, inverossímil como o personagem falido de uma novela barata, que se tornara pobre depois de ser muito rico. Terra arrasada. O cartão de Ano Novo apodrecera na sarjeta.
Ele desceu do ônibus e caminhou firme, mas com o olhar meio abobalhado dos sem-vaidade, absorto num pedaço de batata que, por hábito, entalhava com o inseparável canivete, mesmo caminhando. Totens.
Ele esculpia totens e começou por brincadeira, quando ainda tinha dinheiro. Fez daquilo um hobby e os totens de batatas descascadas viraram moldes de gesso e os moldes viraram pequenos totens de bronze. Totens com narizes horrendos, orelhas de abano, seios caídos, pênis eretos. Ela ainda guardava um daqueles, de pênis ereto, na gaveta, entre as suas calcinhas.
Ele disse a ela uma vez “guarde esse totem entre as suas calcinhas”. “E como ele se chama”, ela perguntou. “Prosopopéia”, respondeu, rindo. “Por que esse nome?” “Por nada”, ele disse. Adorava dizer “por nada”.
As coisas aparentemente só se tornavam, para ele, interessantes, se não tivessem significado. Desse jeito, tudo passava a significar nada e ninguém esquentava muito a cabeça ou, como ele dizia, a moringa. “Eu, se pudesse dormir sempre com você, dormiria e acordaria com o pênis assim como o do totem, duro, teso”, ele disse a ela daquela vez, e riram ambos.
Ela desceu do carro e ativou o alarme no chaveiro, com dois bip agudos. Caminhou firme atrás dele, firmando a sandália vermelha de salto-agulha na calçada esburacada, com o tradicional caminhar feminino semelhante ao de uma égua, equilibrando-se, as ancas se mexendo desgovernadas.
Até que ela resolveu chamar o Passado, gritando-lhe o nome.
Ele se virou e o olhar dele disse-lhe tudo. Disse “vá embora daqui, esta merda toda não combina com você, eu já não sou aquele, sou um outro, bem melhor”. O asceta faz da virtude uma necessidade, Nietzsche.
Claro, dentro dele havia convivendo a mórbida satisfação de saber-se lembrado e a incômoda sensação do abandono. O apaixonado abandonado que prefere a lembrança fria, ou morna, de uma amizade, à total indiferença da amada. Com a lembrança fria, ele poderia se revoltar, sentir pena de si mesmo e culpar aquela que o abandonou. Com a indiferença dela, ele só faria aumentar a raiva de si mesmo, por ser tão insignificante. A melhor opção, entre as duas, era sentir raiva do outro, ela.
Ela capitulou se diria a ele coisas simples, que simulassem ser ela uma pessoa que conviveria bem num bairro muquifo como aquele, ou se diria coisas amáveis, que pudessem ser ditas por uma amiga, naquele tom fraternal que é uma sentença de morte para quem ama em silêncio e se julga esquecido, como era o caso dele.
Em qualquer dos casos, ele esperava, lascando a batata nervosamente com o seu canivete suíço.
Ela não disse nada.
Ou disse, disse a palavra “nada”. Olhou para ele e simplesmente disse: “nada!” Voltou para o carro apressada com as suas ancas de égua, ligou o motor e foi-se embora.
(do livro O Amor dessa Mulher)