Meu companheiro de cela foi-me apresentado
pelo carcereiro como um camarada de primeira
e um homem inteligente. Quando a porta
foi fechada, ele me mostrou onde pendurar
meu chapéu e como lidava com as coisas ali.
(HENRY DAVID THOREAU, A Desobediência Civil)
Naquela época do ano, ainda amanhecia gelado no Jardim Botânico e a BMW azul-marinho subiu devagar, levantando um pouco de pó na estradinha de terra que inaugurava a entrada principal.
Parado no topo da estrada, de pé sobre a grama molhada pelo orvalho da noite, eu via as folhas das árvores se refletindo nos vidros espelhados do carro à medida que ele avançava. Parecia uma propaganda de tevê.
O carro chegou até onde eu estava, e eu estava ali porque sou amigo do zelador e dei uma grana para o homem nos deixar entrar antes de abrir o Jardim.
O motorista parou o carro, desceu e me perguntou “e aí?”. Ká-ká-ká, eu ri alto.
Eu caminhei até ele e fiquei parado, sem saber o que fazer.
Apontou o capô e me disse “senta aí mesmo, a gente precisa levar um lero”.
Ele era irmão do Joacinha, apelido diminutivo do sobrenome “Joaçaba”. O Joacinha, irmão dele, foi um funcionário grandão no Governo, metido em diplomacia ou em alguma coisa importante, que se gabava de ter estado ao lado dos grandes da República e isso em plena Ditadura. Um sujeito feio e aposentado, de óculos grossos, grisalho e obeso, a ponto de andar sempre de suspensórios a manter-lhe as calças no lugar, mas assim mesmo vaidoso da posição que ocupou e trazendo sempre um álbum de recortes e fotos que lhe mostravam ao lado do General Fulano, Presidente da República, ou recebendo condecorações e participando de solenidades.
E era também um pederasta conhecido no Centro da Cidade, onde arregimentava garotos ou cadetes do Exército para, a soldo, satisfazerem-lhe as vontades sexuais, o que talvez explicasse o seu afastamento de Brasília, onde provavelmente ficou manjado. Eu, pensando: Joacinha, Joação, a bichona. Ele vagava sempre pelo Centro com sacolas de compras, em horário comercial, na companhia de um jovem, a pretexto de amizade ou de subordinação hierárquica. Mentira, o sujeitinho era sempre um amante seu.
Este outro Joaçaba que desceu, aqui, na minha frente, da BMW, ainda invocava o irmão pederasta em referências, em pistolões, jamais se referindo a ele pelo sobrenome comum, como os conhecidos faziam e, em hipótese alguma, como Joacinha que era como os debochados, eu incluído, faziam. Mencionava sempre o primeiro nome (“Eliseu”) do irmão.
O carro estava sujo de pó e da merda dos passarinhos e a calça que eu vestia era clara e estava limpa, me preocupei em desfazer a impressão de descuido que gente feito ele tem de gente como eu.
Naquela manhã eu tinha lido o jornal sentado no vaso, como sempre, e o horóscopo dizia que a partir daquela semana Marte me abandonaria. Leio o horóscopo achando que é besteira, mas sempre leio. A previsão de que Marte me abandonaria me deixou meio inseguro e eu fiquei um pouco preocupado, ali, sentado no vaso, sentindo o cheiro ruim que me saía dos intestinos. Martezinho, Martezão.
Ele me disse que eu teria uma tarefa importante, como quem alertasse um idiota para que não faça nenhuma cagada, e olhou disfarçadamente para as minhas unhas, sujas de terra preta.
A preocupação com a fuga de Marte e com a minha calça foi esquecida por causa da forma irritante com que ele me foi pedindo o serviço. Me irrita alguém me tratar feito um pau-mandado, o que na verdade eu sei que sou.
Eu não respondi, mas ri alto ká-ká-ká . Essas coisas me enraivecem e masco a raiva como quem masca um chiclete, até que ele perca o gosto e se transforme numa massa dura e sem gosto, mordida com ódio, junto com a carne da boca, até sair sangue.
Alheio à minha raiva, ele falava sem parar. Tirei um cigarro do maço e tentava, inutilmente, acender um fósforo desses de papelão que vêm em cartelas com propaganda de motel. Riscava o fósforo na tira de lixa e nada da cabeça do palito se incendiar. Num gesto ensaiado, ele tirou do bolso um isqueiro descartável de plástico azul e acendeu na minha direção, solícito. Eu ignorei e continuei a riscar fósforo por fósforo, só por teimosia, até que um resolvesse acender e um, de fato, acendeu.
Do jeito rancoroso como eu tentei acender o cigarro, ele percebeu que a irritação já saltava dos meus olhos e não perguntou nem falou mais nada, temendo alguma das minhas reações, o cachorro feroz. Fiquei pensando, assim, cachorrinho ferozinho, au-au-au, cachorrão ferozão.
A sua fingida delicadeza e a minha irritação duelavam e eu ganhei a contenda, pois ele teve que prestar atenção em mim e me atender, embora, certamente, lhe causasse nojo precisar de alguém como eu e ter de prestar atenção em mim. É um sacrifício para algumas pessoas prestar atenção nas outras.
Foi o cigarro aceso que me aliviou e eu disse “olha aqui, isso que você quer (ele, nesse momento, me interrompeu para explicar que não quer, mas precisa) é uma coisa que pode dar uma merda desse tamanho (e fiz o tamanho da merda, uns quatro palmos, com as mãos abertas), hein? Não sou mal agradecido, é por sua causa que eu tenho algum dinheiro no banco e vou vivendo, mas também é por isso que eu quero continuar vivendo lá na beira do Rio, nos meus momentos de sossego, sabe como?” Ele balançou a cabeça afirmativamente para não ouvir a resposta que não lhe interessava, mas eu respondi assim mesmo.
“Fincando minhoca no anzol”, respondi. Ká-ká-ká, ri.
“Então chega lá em casa alguém mandado por você, me arranca do descanso, para eu vir aqui me encostar na sua BMW suja e lhe ouvir me perguntar se eu consigo fazer?”
Ele disse ameaçador “da próxima vez eu vou pessoalmente, não é legal você ficar falando desse jeito agressivo comigo”. Olhou sério e blefou “talvez eu deva voltar mais tarde, quando você estiver calmo”.
Eu fiz um gesto que não precisava e falei “não precisa você vir pessoalmente, nem estou pedindo que você vá até a minha casa podre fincada no barro da beira do Rio, beber café nas minhas canecas arranhadas, de alumínio barato. Arranja um jeito seguro de me chamar”, eu lhe disse. “Não é pouco o que você precisa, mas eu sei e posso fazer, vou lá falar com o homem, a gente sabe bem que ele está lá, sentado, entre os seus livros e o seu violino. Ele tem consideração por mim e há de me receber, principalmente se a mulher dele ainda estiver no Tibet, com aquelas maluquices dela. Então, antes de você vir encher o meu saco perguntando se eu vou conseguir, sabendo que eu vou conseguir, vamos tratar da grana, uma em cima da outra, cash. Se você duvida de mim, pague para ver e, se eu não andar direitinho, você manda dar um jeito em mim, botar fogo no meu patrimônio, a minha casa velha.” Essa gente adora falar em patrimônio. Ká-ká-ká.
Fiquei com medo de que ele fosse embora, mas ele pegou dentro do carro um envelope pardo todo amassado e riscado por esferográfica e me pagou em dinheiro. Dinheirinho gostosinho, dinheirão gostosão.
Não era a minha intenção brigar com ele. Valia a pena ser político e de boca fechada, antes que o pagador se aborrecesse comigo e que ficássemos eu sem o dinheiro e ele sem o serviço. Era necessária a troca.
Não gosto de trocar, eu por mim ficaria sempre com tudo, mas são muitas as trocas.
Houve uma mulher pequena, de pele clara mas que, quando eu a conheci, estava bronzeada, olhos levemente puxados e cabelos pretos, quase sempre amarrados, que se chamava francesamente de Catherine. Ela me dizia “fica, eu te ajudo e lavo as suas camisas”, como quem diz “te dou afeto e você se acalma e fica comigo, porque eu preciso de um homem, qualquer homem, ao meu lado”. Trocas.
Ela tinha cara de Rosane ou de Miriam, jamais daquele nome francês que alguém botou nela. Ká-ká-ká.
E morria de medo de mim, por isso era assim que ela dizia que precisava do meu carinho. Não insinuava a um sujeito como eu, que ela achava estranho e perigoso, que eu também precisava do carinho dela. “Pode deixar tudo aqui, eu lavo as suas camisas”, ela me dizia.
Noutro dia eu ouvi no rádio uma música antiga e me lembrei dela.
No início da Primavera o sabiá canta forte, e a gente sente o perfume das flores, o cheiro da laranjeira. Sensações.
Com tudo isso, eu me lembrei da Catherine, como quem se lembra de uma namoradinha que foi embora do bairro e a quem a gente nunca mais viu. Ela aplicava injeções na Farmácia Milagre, em Aruanã, na divisa do Mato Grosso com Goiás. Eu vinha, há dias, foragido de Canarana, no Mato Grosso, e vinha com uma ferida no braço rasgado por arame farpado, e assim deviam estar vindo vários, na mesma situação.
Eu estava triste porque tinha estado por dois meses infiltrado no acampamento do MST e, quando a situação enfeou, eu, em legítima defesa, dei três tiros de trinta e oito no capataz da Fazenda do Roncador, e deixei o homem morto nos pés da mulher dele. Uma gorda parruda, fria, daquelas que não têm medo de homem e que, vendo o marido morto, tentou me acertar a cabeça com uma enxada, o que eu safei dando uma rasteira nela e alguns chutes nas pernas quando já estava caída no chão. Covarde. Covardinho, covardão. Poderia ter matado ela também, se eu quisesse, mas ela tinha cria no pé, dormindo dentro da casa.
Cheguei na farmácia quase ao meio-dia e o farmacêutico estava baixando a grade de ferro, indo almoçar. Eu cheguei rápido e disse “tchê, preciso levar uma injeção”, deixando claro no sotaque que eu era gaúcho e que estava de passagem. Ele cagou para o fato de eu ser gaúcho e, se eu fosse goiano como ele, teria me atendido melhor. Apenas disse “Dona ´Catarina´ está lá dentro, já vem” e baixou quase toda a grade, como a dizer para eu esperar na rua.
O arame havia penetrado fundo na carne do braço e era arame seco, enferrujado, castigado pela chuva e pelo sol. Eu tinha uma limalha pequena do arame dentro do braço, descobri depois, pelo médico, em Pirenópolis, perto de Goiânia, onde eu recebi algum dinheiro.
A musculatura do meu braço de vez em quando se encolhia sozinha, num espasmo, e ia espalhando aos poucos a maçaroca de folhas, que um desses velhos benzedores da estrada tinha posto para aliviar e que estava cada vez mais seca, parecia erva-mate. Eu tinha a impressão que o meu queixo estava ficando duro, trancado, e eu pensava ser um deslocamento, eu tinha levado alguns safanões antes de fugir. Era a fase inicial do tétano e, quando o sujeito piora, fica com um sorriso besta congelado no rosto, feito uma estátua de palhaço. O médico disse que o enrijecimento se chamava trismo e que, com sorte, eu me salvaria e me aplicou uma e me receitou outras injeções de antibióticos.
E quem aplicava era a tal “Catarina”, mulher com nome de cobra de circo.
Foi assim que eu vi primeiro os pés de Catherine, que surgiram por debaixo do vão da cortina de ferro, com as unhas pintadas de cor-de-laranja e de chinelos verdes, de dedo. Ao lado dos pés surgiram mais oito dedos da mão, quatro ao lado de cada pé, os polegares ainda estavam do lado de dentro da porta, apoiando os demais para puxá-la para cima. Todos pintados de cor-de-laranja.
Fiquei meio tarado vendo as partes que vi, mãos e pés, mesmo sem ver o rosto dela, que depois não se revelaria assim tão atraente, mas acabei me acostumando com ele. Era, do jeito que fosse, uma mulher, e há dias eu não tinha tempo para nenhuma delas, nem para as putas.
A porta foi subindo com barulho e descobrindo joelhos marcados de tanto encerar a casa ou a farmácia. Ela estava com um vestido colorido, sem mangas, e quando a porta terminou de subir revelou um rosto surpreendentemente sorridente e dois braços que, esticados ao máximo, estavam grudados ao corpo de uma mulher pequena. Ela precisava ficar na ponta dos pés para abrir a porta até em cima e exalava um cheiro azedo dos sovacos depilados, o desodorante seria renovado com o banho em casa, na hora do almoço. Sovaquinho, sovacão.
Quando olhou o meu ferimento, ela disse na hora “moço, isso é tétano, precisa de antibiótico”. Eu dei a receita do médico e ela trouxe a injeção e me aplicou no braço, cobrando o preço antigo, gostou de mim de cara.
Arranjei um lugarzinho para dormir na cidade por dois dias e ia todos os dias na farmácia renovar a injeção, o que eu achava que não adiantava muito, mas era o jeito que achei de ir ver a Catherine. Eu sempre ia lá perto da hora de fechar a farmácia, porque sabia que ela estaria sozinha naquele horário, e foi lá mesmo que eu a comi, em cima de uma mesa, pela primeira vez, ainda com a dor ardendo no braço, os músculos duros, gozo dolorido, Catherine pulando em cima de mim feito uma ginete. Fodinha, fodão.
Morei perto dali por uns dois meses e um pouco mais longe por um ano. Eu voltava sempre que podia, era um sentimento gelado na barriga que eu tinha por ela, uma amizade grande e importante, como se fosse um amor, eu acho. Ela nunca me perguntou nada, não dava um pio, só queria lavar as minhas camisas e trepar comigo, desde que a gente ficasse, abraçados na cama, depois, se esfregando, pelados.
Fui embora de lá numa manhã bem cedo, sem deixar nem um bilhete para ela, como um ingrato, como um gato que encontra a porta da cozinha aberta e foge arisco.
Numa tarde antes, eu estava sem camisa no banheiro da casa dela, fazendo a barba, e ela na porta conversando comigo, animada, dizendo bobagem, e a cada vez que a espuma caía na minha barriga, ela passava a mão macia afundando os dedos na minha gordura, fazendo rolinhos com os pêlos do meu peito, e ria, até que tomou coragem no meio de uma risada e me disse “eu amo você, não vá embora”.
Aquilo se espalhou no meu rosto como se fosse um copo d’água fria e eu peguei a toalha dependurada no ganchinho da parede, passei no rosto espumado e disse sem olhar para ela e sem responder, “pronto, acabou, agora eu vou tomar o meu banho”.
Naquela noite ainda jantei a comidinha dela e nós trepamos ouvindo o barulho das partes úmidas do sexo do outro, mas no outro dia bem cedo eu fui embora. Sou ingrato, geralmente com quem não merece. Ingratidinha, ingratidão.
O pó do carro marca de vincos a minha calça cor de creme, enquanto o Joaçaba-macho fala no celular e eu agüento, fico dando satisfação para ele.
Troca errada. Não deixei nenhum bilhete “tchau, Catherine, vou indo embora”.
Agora quem lava as minhas camisas sou eu mesmo, na beira do rio, lavo elas como a minha cara porca. Pesco, encho o rabo de cerveja ou de vinho, dependendo do frio ou do calor, durmo, raramente trepo com alguém. Fico na beira do rio esperando que alguém venha me avisar para começar um serviço novo e depois me sumir do mapa, mas sempre por lá, o que é um sinal de velhice, porque, antes, eu nunca voltava para lugar algum e, agora, eu volto sempre para o mesmo lugar.
É como se fosse um ciclo, é sempre a mesma coisa.
Mastigo, engulo e arroto saudades, como quem almoçou repolho mal cozido.
Quando estou sóbrio, chego a ficar feliz, lavo roupa cantando, pesco cantando. Se bebo e fico meio babão, me dá vontade de meter uma bala na cabeça, de saudades da minha família, da Catherine, ou já nem sei mais do que, o que é mais triste ainda. Tristinho, Tristão.
Meu pensamento tem a mania de se ocupar com o diminutivo e com o aumentativo, pequeno ou grande, e não dar espaço para as idéias médias.
Eu só penso naquelas coisas que têm tamanhos extremos, e essas não são muito importantes.
(Do livro O Amor dessa Mulher)