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A Noite em que Rosa Morreu

 

Esse aí vem aqui há bastante tempo.

 

No inverno, então, vem quase todos os dias, passando duas horas do entardecer, pode contar com ele, geralmente ele se senta na mesa do canto, a mesa três.

 

As roupas dele são velhas, é verdade, a gente nota. Mas também se nota que são roupas de alfaiate, feitas sob medida. A elegância, eu sempre achei, está tão mais grudada nele, na pessoa dele, do que na roupa. Acho que se ele entrasse aqui só de cuecas e se sentasse naquele canto, como vem fazendo há mais de quatro anos, e pedisse uma sopa, ninguém notaria  a sua quase-nudez.

 

Ainda assim seria tratado com cerimônia, aqui.

 

Se o senhor observar, vai notar que a calça dele é de um cinza desbotado. Pano bom, mas desbotado. Pano desbotado, mas com os vincos  bem marcados nas pernas. Com os sapatos, a mesma coisa. Estão marcados, rachados, mas assim como o senhor está vendo agora, sempre estiveram, bem engraxados, brilhando.

 

Nós, eu e a maioria dos garçons afora o Dutra, que é um recalcado e não gosta de gente pobre e refinada,  procuramos deixar a mesa três, nesse horário, sempre desocupada para ele. Não há pedido expresso, não tem reserva de mesa, mas aquele canto fica impecável ao cair da tarde, esperando ele chegar. Hoje já mandei trocar a toalha, sabendo que ele chegaria.

 

E não é só isso, eu vou contar um segredo ao senhor.

 

Eu já me peguei comprando roupas com a mesma combinação que ele usa e hoje dei sorte de estar contando isso, aqui, ao senhor, porque justamente hoje ele está vestindo o traje que eu mais aprecio. A calça cinza de lã, a camisa de flanela com aquele xadrezinho e o  blazer preto de veludo. É um homem de gosto apurado, mesmo sendo inegavelmente um homem pobre.

 

Eu não vivo mal. Este bar, graças a Deus, me dá uma condição de vida com a qual eu seria injusto, se me queixasse. Aqui vem gente conhecida, artistas do teatro e da televisão, do Rio de Janeiro ou de São Paulo, quando passam pela cidade, vêm aqui. Advogados, engenheiros, médicos e pintores vem aqui, nos finais de tarde, fazer o seu happy hour.

 

Não vivo mal, mas não tenho gosto, vivi até hoje para o trabalho, e no trabalho roupa sempre foi acessório.

 

E, no caso dele, acho que a preparação para vir aqui deve lhe ocupar o pensamento durante o dia inteiro. A gente aqui sempre disfarça, como agora, e fica observando quando ele se senta ali, ao chegar. Ele abre cuidadosamente o guardanapo e coloca sobre o colo, não sem antes desfazer as dobras e passar a mão direita, suavemente, sobre o tecido.

 

Um garçon que trabalhava aqui, e que saiu porque ficou doente, jurou que ele beijava o guardanapo, mas eu acho que isso  é um  exagêro. No máximo ele secava os lábios ou aspirava o perfume, para ver se o guardanapo estava mesmo limpo.

 

Ele trata os garçons e a mim mesmo como se estivesse jantando no Ritz e disso estamos bem longe, como o senhor mesmo pode notar.

 

Um homem cuidadoso.

 

Outra coisa que eu sempre achei interessante é a maneira como ele penteia o cabelo, assim, impecavelmente repartido. Nisso também ele deve gastar algum tempo, antes de vir aqui. Rosto liso, escanhoado, apesar da barba cerrada, provavelmente salpicado por alguma loção after shave que não faz jus ao requinte.

 

E aqui nós usamos, deve fazer um ano, umas toalhinhas de papel encerado que são colocadas sobre as toalhas de pano, por medida de higiene e de economia. E isto parece tê-lo agradado, e muito, embora eu esperasse alguma reclamação e estivesse preparado para manter as toalhas de tecido - e só as de tecido - da mesa três impecavelmente limpas, caso ele manifestasse alguma desconformidade.

 

Mas não, isso agradou a ele. Intimamente isso me deixou satisfeito, o fato de tê-lo agradado. É um homem distinto e nós aqui temos poucos clientes assim, como ele e o senhor. Aqui vem gente com algum dinheiro, não muito,  como eu já lhe disse.

 

Mas gente distinta, muito pouca. Gente assim, nasce com isso, ou não nasce. Não tem dinheiro que faça alguém se tornar assim. E ele, a gente nota, nem dinheiro tem e se um dia ele viesse aqui tomar sopa e os cálices de vinho tinto nacional dele e não pudesse pagar por isso, eu não me importaria de servi-lo, assim mesmo.

 

Claro, isso é uma hipótese que eu não consigo imaginar, um homem desses, pedindo fiado.

 

Acho que um homem assim morre antes que isso aconteça. Mas eu não me importaria de custear esses pequenos prazeres a ele.

 

Eu mesmo bebo muito pouco, seria como se eu cedesse os meus próprios cálices, a minha quota de vinho,  em favor dele.

 

E se o senhor quer saber, não faço a mínima idéia de  como ele arranja o dinheiro, e nem quero saber, contanto que ele venha, se sente ali e ali se deixe ficar, aproveitando a sua vidinha.

 

Acho até que regulamos em idade, eu e ele, pouco mais de sessenta, pouco menos de sessenta e cinco.Nessa idade a gente acaba se tornando solidário. Como se houvesse um parentesco, um laço de sangue.

 

Mas eu lhe contava das toalhas de papel. E as tais toalhas agradaram tanto que ele, ao fazer a refeição, geralmente uma sopa e um pão sovado quente, faz o possível para não sujá-las e não suja mesmo, pelo que eu reparo daqui. As toalhas são descartáveis para isso mesmo, para mim não faria a menor diferença se sujasse ou deixasse de sujar.

 

Só que ele as conserva e sabe para que? Para escrever nelas.

 

Bebe a sopa devagar, molhando o pão. Quando acaba, faz aquela mesura com o guardanapo, seca a boca e passa a beber os cálices de vinho.

 

Tira uma esferográfica, de tampa azul, do bolso do casaco, e começa a escrever na toalha de papel. Pára, pensativo, por alguns instantes, olha para a parede e retoma a escrita. Escreve, escreve, escreve e se alguém der um tiro de revólver aqui dentro do bar, duvido que ele preste atenção.

 

O garçon que o atende tem ordem expressa de ir enchendo o cálice enquanto ele não mandar parar e ele sequer olha para o garçon, enquanto vai escrevendo. Quando não quer mais, aguarda que o garçon encha o copo e aí levanta a mão espalmada, na altura da cabeça: chega de vinho. Bebe o vinho até o último gole, põe a tampa na canetinha de plástico e guarda ela no bolso do casaco como se estivesse guardando uma tinteiro folheada a ouro.

 

Passa as costas da mão direita sobre a toalha de papel, para tirar os farelos de pão que ainda estejam por ali e dobra a toalha, primeiro em duas, depois em quatro e depois em seis partes.

 

Guarda ela no bolso interno do casaco, junto com a caneta, e levanta o dedo indicador da mão direita, até que venha o garçon com a conta dentro da capinha de couro.

 

Ele avisa sempre que está levando embora a toalha de papel, pede licença ao garçon da mesa. O garçon invariavelmente me olha e eu, aflito, faço que sim, com a cabeça, preocupado em não ofender o cliente. Ele sempre refuga o café, cortesia da casa.

 

Tira o dinheiro da carteira e o põe contadinho dentro da capa de couro onde tem  o nome do restaurante, gravado em relêvo. Então se levanta e, cabeça erguida, sai, no seu passo cadenciado. Não sei o seu nome, nunca perguntei, e ele jamais perguntou o meu. Não trocamos mais do que o habitual boa noite, na chegada, ou o volte sempre, tenha uma boa noite, na saída. Não saberia o que dizer a ele.

 

Mas se ele não vier mais, nós temos muito a perder, não sei bem o que.

 

Numa noite dessas, vinte e quatro de julho, eu lembro  com muita certeza porque era aniversário da morte de Rosa, minha mulher, cinco anos, leucemia.

 

Rosa que me ajudava aqui e sempre foi, junto com todo esse bar, junto com a mobília e as toalhas,  junto com os quadros e com as flores de plástico, a alegria da minha vida.

 

Pois em vinte e quatro de julho ele pediu ao garçon um vinho português, acho que Porca de Murça, e não o nacional, o gaúcho, de sempre. O garçon veio antes cochichar comigo e eu passei-lhe uma descompostura, que servisse o homem, como ele pedira, cobrasse vinho nacional, como se fosse um engano. Que fosse rápido, o garçon.

 

Naquela noite ele escreveu como nunca, assim, de sopetão. Escrevia, bebia um gole, parava. Escrevia, bebia, parava de escrever. Pagou a conta. As mãos dele, naquela noite, na mesma noite em que Rosa morreu, estavam carregadas de tensão, de descargas, de arroubos.

 

E o rosto dele parecia a fachada de uma casa velha, uma casa que olhada pela frente estava ali, pacífica, úmida e cheia de manchas, como sempre estivera nos últimos sessenta anos.

 

Mas como se por detrás daquela fachada um guindaste, com uma bola de ferro na ponta, se preparasse para pôr tudo aquilo abaixo, em não mais do que dois ou três golpes que exporiam as camadas de tinta sobrepostas, os tijolos grandes e antigos, cimentados numa época em que as pessoas se sentavam diante da porta e das janelas daquela casa velha, na calçada, até escurecer.

 

E quando parou de escrever, pagou a conta e saiu.

 

Pela primeira e única vez não dobrou a toalha e a deixou lá, não limpou dela os farelos de pão e nem se preocupou com respingos de vinho que lhe cairam pelo queixo barbeado.

 

Pela primeira e única vez ele passou aqui em frente ao meu canto, ao meu balcão, e pela primeira vez eu pude ouvir a sua voz, rouca e baixa, quando antes de sair ele me disse muito obrigado.

 

Fiquei olhando para fora um tempo, surpreso,  até ele sumir na esquina.

 

Fui até a mesa três e recolhi a toalha de papel, essa aqui, que guardo até hoje, na gaveta, com a sua letra firme e bem desenhada, irada, com todo os versos de As Rosas Não Falam, um após o outro.

 

Quase que dá para ouvir ele cantando isso aqui, sentido, com sua voz rouca e baixa.

 

Quase que dá para sentir as dores nos nervos das suas mãos tensas.

 

(Do livro O Coro do Vento)