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O Amor dessa Mulher

 

É engraçado como o amor, mesmo que ilusório, redime um homem como eu da sua insuportável feiúra.

 

Eu não sou grotesco, mas sou feio.

 

Quando conheci América, eu ria sozinho.

 

Primeiro, desse nome besta que ela tem. Depois, do amor que ela me dedicava e, claro, que eu não merecia, nunca mereci. Eu achava que só podia ser fingimento dela.

 

Ela jamais poderia ter filhos, interrompeu qualquer esperança de reprodução futura ao se tornar estéril através de um procedimento médico voluntário chamado salpingotripsia que, apesar do nome estranho, era no final das contas apenas o esmagamento das suas trompas por um instrumento de aço gelado.

 

Ela preferia contar a todo mundo como se fosse uma cirurgia rara e delicada, exatamente como faz uma pessoa hipocondríaca que se gaba da raridade da doença que acredita estar minando o seu organismo.

 

Se eu sou feio e ela é estéril, então passei a imaginar que poderia ser verdade que alguma coisa ela sentia por mim, pois nem para prover-lhe da prole eu teria serventia.

 

América é bonita, suave, jovem e fresca. O fresca eu li num livro, pois fresca para mim sempre foi aquela mulher que grita com medo de baratas. Minha mãe esmagava baratas com a sola dos pés descalços e calosos, minha mãe nunca foi fresca.

 

América lia o jornal e eu lia um livro, sentado numa rede dependurada na varanda de um hotel na Serra, onde passávamos o final de semana. Foi uma coincidência eu ter-lhe encontrado um novo adjetivo, pois poucos minutos antes eu havia parado para olhar para ela, a poucos metros de mim, lendo o jornal, sentada em posição de lótus sobre o tapete, perto da janela que dava para a varanda do quarto, projetada sobre a frente do hotel.

 

Era uma manhã fria e o sol clareava todo o tapete cheio de desenhos vermelhos e azul-marinhos e América estava sentada nele justamente para, aproveitando o sol que entrava, aquecer-se. De pijama de seda amarelo, meias de algodão brancas e uma manta térmica sobre os ombros, ela estava muito interessada na crônica que estava lendo, pois sorria sem dar por mim, sem prestar atenção ao meu interesse pela cena.

 

Os cabelos de América são compridos e fininhos como os das mulheres nas propagandas de xampu, castanho-claros. Naquela manhã de sol em que ela estava com a cabeça apontada para o jornal aberto sobre o tapete, lendo e sorrindo, o sol atravessava a cabeça dela e a transformava num fantasma ou num anjo que a todo momento ajeitava o cabelo para trás da orelha.

 

Foi então que eu li no livro um trecho que falava sobre uma mulher linda e fresca e disse a ela: América, você é fresca. Ela se virou e me perguntou “o que foi que eu fiz?”, com um sorriso pequeno e perfeito que significava, no entanto, uma gargalhada e, ao mesmo tempo, significava que ela não havia se importado muito com o que eu dissera ou sequer ouvira eu chamá-la de fresca, pois ainda estava com a mente deliciada pelas palavras na crônica do jornal.

 

Eu tinha medo quando ela me olhava assim, pois sempre me dava a mórbida impressão de que ela ainda não se dera conta de que vivia há meses com alguém como eu e que ao meu lado dormia, comia, ia à praia, fazia compras e, principalmente, trepava.

 

Naquele momento ela poderia, me olhando, dar-se conta de que passava um final de semana com um ogro na Serra, quando vários homens bonitos queriam poder se abraçar naquela felicidade infinita que eu sentia naquele momento e que sinto até hoje.

 

Não há ângulo fotográfico que dê jeito na minha feiúra, pois os meus cabelos são crespos e ralos, minha pele tostada pelo sol fica semelhante a uma queimadura de terceiro grau, vermelha e rachada, e as minhas pernas são arqueadas. Sou forte e meu tórax é largo, mas os meus braços são finos, como um homem de argila moldado às pressas por um artesão que tinha coisas mais importantes para fazer e que, amassando o barro apressadamente, acabou o seu boneco de qualquer jeito. Além disso, o maldito artista que me moldou aproveitou um restinho de argila para me fincar um nariz pontudo e caricato no rosto.

 

Isso faz com que eu troque constantemente a foto que há no único porta-retratos ilustrado pela minha estética borrada, na sala do nosso apartamento. Todos os outros quinze ou dezesseis porta-retratos mostram América, geralmente fotografada por mim mesmo.

 

De quinze em quinze dias eu substituo a minha foto por outra, cada uma sendo a tentativa de aperfeiçoar a anterior; já gastei muito dinheiro com fotógrafos tentando obter algo aceitável.

 

Tenho dinheiro, é verdade, o que encerraria facilmente, aos olhos dos outros, a questão do amor que ela me devota com a tradicional e gasta conclusão de que eu sou um “homem rico, vítima da linda aproveitadora”. O problema é que ela tem mais dinheiro do que eu, deixado pela morte do pai, que ganhou muito dinheiro negociando água mineral em jazidas próprias.

 

Na primeira vez em que ela me olhou com aquele olhar, ainda nem namorávamos, éramos bons amigos. Estávamos fazendo compras num supermercado pequeno, desses de bairro, ali no Bonfim mesmo, onde moramos até hoje, quando a sacola plástica que eu carregava se rompeu, espalhando laranjas pelos corredores. Eu, vestindo umas bermudas que deixavam as minhas pernas ridículas à mostra, corria tentando aparar as frutas com os pés.

 

Eu, o enjeitado, e ela, a amiga bonita, prestativa e caridosa, com pena do infeliz aqui, ajudando-me a fazer as compras. Quando consegui reunir a dúzia de laranjas fugitivas, ela me olhou pela primeira vez daquele jeito, com aquela ternura descabida, o que naquele momento me deixou muito nervoso.

 

Em casa, depois que ela me ajudou a guardar as compras nos armários e se foi, comecei a pensar sobre o acontecido e aquilo foi me deixando irritado, pois eu não tinha o direito de acreditar que uma mulher daquelas iria me olhar com algo mais do que com sentida piedade.

 

Encaro a realidade com bastante rigor, especialmente a minha. Quem quiser, que se iluda, não eu.

 

Então, eu me esbofeteei - plaft - com a mão direita, na frente do espelho do hall de entrada, foi um bofetão fraco. O coração fraquejou um pouco e eu cheguei a capitular sobre a possibilidade dela, América, ter realmente se encantado com a minha simpatia ou inteligência e, plaft, um bofetão ainda mais forte com a mão esquerda em meu próprio rosto fez com que eu voltasse a enxergar a realidade do mundo.

 

Desta vez deixara a marca dos meus dedos sobre o rosto avermelhado.

 

Não adiantou, quem quer enxergar otimismo a seu próprio respeito sempre arranja mais uma desculpa complacente, é o mesmo que passar um miolo de pão no molho que restou no prato. E então eu, sempre na frente do espelho, pensei que, talvez, o meu dinheiro pudesse fazer com que América planejasse uma vida ainda melhor, somando o meu dinheiro ao dela, e a hipótese de um amor interesseiro partido de uma criatura tão maravilhosa fez com que eu a ofendesse, em meu entender, com muita gravidade, ainda que ela não fizesse a menor idéia disso.

 

Eu, naquele momento, pensei em como agredi o amor que já sentia por essa mulher de uma forma imperdoável. Me olhei no reflexo do espelho e senti muita raiva de mim mesmo, perguntando aos berros “o que você está pensando seu filho de uma cadela?”; pobre da minha mãe. Cerrei firme o punho direito, num gesto que me movimentou apenas o antebraço, e – poft - mandei um murro no meu rosto com razoável entusiasmo, atingindo a maçã direita, logo abaixo do olho. Agüentei bem, sou de complexão forte, como disse antes.

 

E, ainda assim, os tabefes e o murro não me diminuíram a auto-estima, como eu tinha desejado, pelo contrário, me encheram de orgulho e eu me referi a ela, América, em voz alta, como “uma puta qualquer que não merece o meu sofrimento”, o que - agora reconheço – foi um erro da minha parte.

 

Então, eu peguei o cinzeiro de cristal espesso sobre a mesa da copa e, desta vez com a mão esquerda, tomando o impulso limitado pela extensão do mesmo antebraço, arremessei o objeto com força contra mim e ele bateu sobre a ossatura da minha testa - tunc, o que me fez ver pequenos círculos de luz concêntricos, antes de tudo escurecer e eu cair desmaiado, de borco sobre a mesa de centro.

 

Ao acordar, tonto, vi umas gotas de sangue secando sobre o assoalho de tábuas coladas, como se fossem pingos de cera quente derretidos de uma vela. E a vela era eu mesmo, que ainda derretia.

 

Levantei-me tonto e saí porta afora, sangrando. Quando cheguei na portaria do prédio, quatro andares abaixo, o porteiro Genuíno se alarmou, pensando que eu me debatera numa briga ou num assalto, e eu disse “calma, eu mesmo me golpeei”.

 

Ele me olhou com uma dúvida sobre me socorrer ou chamar um familiar para ajudá-lo a lidar comigo, dúvida típica de qualquer porteiro, mas acho que ali ele aprendeu a me conhecer.

 

Mais tarde, quando América veio morar comigo, a impressão que eu tive era a de que o Genuíno ficou mais tranqüilo e passou a acreditar ainda mais em mim e na minha personalidade forte.

 

A presença de América, aqui, nesse prédio de gente horrorosa com cheiro de bolor, iluminou a vida de todo mundo. O meu amor por América e o dela por mim salvaram a todos nós, deram um aspecto de normalidade a isso aqui.

 

A primeira vez em que eu e ela fizemos amor foi a felicidade suprema.

 

Depois que ela adormeceu, eu me beliscava com força, deixando marcas com as unhas semelhantes a pequenas mordidas na pele fina do meu antebraço, por dificuldade de acreditar no que a vida me reservara momentos antes. O amor que nós fizemos durou horas e horas, até ralarmos os sexos e ficarmos aborrecidos e pensativos de tanto foder.

 

Naquele dia ela foi embora para casa de manhã bem cedo, pois no início não dormia aqui, e às sete e meia da manhã, depois daquela exaustão completa pelo gozo, eu desci sozinho e exultante para, já refeito e com saudades, comemorar no boteco da esquina, bebendo café com leite.

 

Estava tão feliz que passei na portaria do prédio e chamei o Genuíno dentro do elevador de serviço.

 

Baixando as calças, mostrei ao porteiro constrangido o meu pau esfolado, a marca do sentimento queimando dentro e fora de mim, a pele do meu prepúcio com saliências de carne-viva inchada, que pareciam vários lábios pequenos e finos, pintados de batom vermelho-vivo. - Olha, Genuíno, o sinal do amor.

O amor dessa mulher!

 

(Do livro O Amor dessa Mulher)