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O Romance dos Comuns

 

 

Foi no início de uma tarde nublada e fria.

 

Sentamo-nos num café onde se podia, também, almoçar. Não almoçamos, mesmo passada a hora.

 

Ela estava cada dia mais gorda. E eu, mais velho e mais careca; mais grisalho no cabelo que sobrou; unhas amareladas pela nicotina.

 

Eu apodrecia aos poucos; porém mais rápido do que todo mundo, por causa do cigarro. O que não me impedia de gostar.

 

Com força e persistência, enxergando beleza em tudo, como acontece quando o coração é tomado por essas coisas.

Era um lugar com paredes de tijolos crus, escuros. Havia também mesas na rua, apesar do vento gelado. Sentamos na área interna, num lugar onde havia pouca gente. E pedimos dois copos de vinho, apartadas da garrafa. Não uma garrafa inteira, como seria o razoável, mas dois copos (aos quais eles chamavam de “taças”) individuais, de um vinho sem procedência. Não comemos nada, embora eu adivinhasse nela alguma impaciência em relação às mesas mais próximas, onde as pessoas beliscavam petiscos, no início daquela tarde. A ansiedade a obrigava a comer.

 

Depois de alguns rodeios e goles, ela deu-me o pacote e disse:

- Eu trouxe para você de Montevidéu.

Ela foi ao Uruguai numa daquelas excursões baratas, de ônibus. Tinha um grande salário, na sua alta função pública. Mas era econômica, apegada ao dinheiro; por causa da vidinha miserável que – eu adivinhava – teve na infância. Ao invés de tomar um avião, pois tinha dinheiro para pagar a passagem, passou longas horas dentro de um ônibus cheio de mulheres solitárias, numa excursão. Para economizar alguns trocados.

Era um pequeno livro de poemas, em espanhol, de papel couché amarelado. Mário Benedetti.

- Tem muitos sebos, por lá. Mas esse eu comprei na livraria, novinho.

Bebi um gole de vinho e folheei o livrinho ao acaso. Comecei a ler, solene, um dos poemas, Táctica y Estrategia, traduzindo direto para o português, em voz alta. Olhava para ela, enquanto lia.

- Minha tática é olhar-te, aprender como és, querer-te como és/minha tática é falar-te, e escutar-te, construir com palavras, uma ponte indestrutível/minha tática é ficar na tua lembrança, não sei como e não sei, com que pretexto, mas ficar em você...

(Mi táctica es mirarte, aprender como sos, quererte como sos/ mi táctica es hablarte, y escucharte, construir con palabras, um puente indestructible/ mi táctica es quedarme en tu recuerdo, no sé como ni sé, con que pretexto, pero quedarme en vos...)

Eu bebia goles espaçados do vinho, molhando a boca. Ler poemas em espanhol, bebendo vinho, me dava a mesma sensação de quando comia pequenos biscoitos crocantes de milho, desses que acompanham o café. Uma sensação boa e palatável, derretida na boca, mas passageira.

Faltou-nos um revoar de pássaros. Bem-te-vis piando. Vento. Folhas caindo. Um céu avermelhado. O pôr-do-sol. Mas estávamos dentro do restaurante. Nada disso aconteceu. As mãos dela estavam postas sobre a toalha, com as suas unhas cor de amora. A unha do indicador roçando a ponta rendada da toalha verde mostrava inquietude. Ouviu o poema em silêncio.

- Pena que hoje ainda não é sábado.

- Sábado?

- É. No sábado eu sempre me sinto tão amena...

Achei engraçada aquela expressão “tão amena”, que me pareceu imprópria, ou infantil, como se ela falasse a respeito da temperatura ou da acidez do vinho e não dela mesma, uma mulher.

Ela não deu, ou fingiu não dar, muita bola para o meu poema. Um poema que era do Mario Benedetti e do livro que ela própria me deu. Seguiu falando sobre as já conhecidas banalidades da vida. Sobre o plano de carreira do Serviço Público. O frio e a chuva da véspera. As prisões escandalosas noticiadas na mídia.

Alguma coisa em nós dois; mais nela do que em mim, dizia “não podemos mais”, e eu não me conformava. Esse “não poder” não era afetivo, mas estético. E era dela, não meu. Eu só queria recuperar aquela coisa que nos atingiu no início e que nos cegava ao que realmente éramos e que nos jogava no exclusivo e restrito terreno daquilo que sentíamos. O corpo apodrece; intumesce; enruga; esmorece. E o que foi sentido fica anotado para sempre até num guardanapo de papel.

O amor, ali, borbulhava por debaixo da terra, agônico. Não era uma fonte que secou, mas que estava sendo soterrada, aos poucos, por ela. Mas o que se via era apenas a terra. Ainda úmida, com uns filetes de água.

 

Mas indiscutivelmente era só a terra.

 

(do livro de contos O Romance dos Comuns, inédito em português - já publicado em espanhol, ebook)