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Dias Nublados

 

 

Aproveito os dias de sol mais do que qualquer pessoa, mais do que os presidiários, mais do que a fotossíntese, mais do que os coletores de energia solar, mais do que os veranistas ainda pálidos no inicio da estação, mais do que qualquer criatura ou coisa, enfim.

 

A chuva me põe em estado constante de alerta, em tensão permanente como um cachorro cujas orelhas estão de pé, aguardando o perigo. Houve um tempo, em criança, que eu gostava da chuva batendo nos vidros das janelas da minha casa. Era uma casa ordinária e brasileira, de tábuas descascadas e falhas nas paredes, não era uma cena de inverno americano como as dos filmes de Walt Disney, onde tudo sempre termina insuportavelmente bem.

 

Quase nada termina bem. Quase nada.

 

Ainda assim um dia de sol, para mim, é um filme e aqui nesta nossa parte de mundo ainda se vê as folhas secas no chão como um tapete e o meu prazer é caminhar  no  parque pisoteando todas as folhas que eu puder, como a ter a certeza de que elas de fato existem e que não estão apenas pintadas no chão.

 

É grande a minha satisfação ao ouvir o seu créc-créc de biscoito cream-cracker partido. Me dou ao trabalho de caminhar saltando de forma a pisar apenas nas folhas o que certamente me dá, aos olhos dos demais, um ar meio amalucado.

 

Os tremores se sucedem nas minhas mãos e acho que as pessoas prestam atenção em mim, provavelmente, assim como os meus eventuais carrascos Divinos, me atribuindo também elas – as pessoas que estão no parque -  uma culpa qualquer, e que eu sequer imagino qual seja. Penso também que talvez me julguem - os outros, não Aquele que me condenou, que tudo sabe e a tudo vê - mais um desses drogados que se vê por aí. Nunca experimentei qualquer tipo de droga, temendo sair da realidade. E agora a realidade foi quem saiu da minha vida.

 

Tenho medo. 

 

Hoje não entro em igrejas e evito as chuvas, especialmente os temporais e seus raios insistentes e letais. Evitar é o termo que utilizo em público, quando necessário, para não parecer tão louco, pois na verdade tenho muito medo das chuvas e dos seus trovões. Segundo a minha avó, são os rugidos de Deus, irritado pelos pecados do povaréu cá de baixo. Igrejas e trovões, não contem comigo.

 

As igrejas eu as evito com um virar acintoso do olhar em sentido contrário. Os crentes se benzem na frente das igrejas, eu me benzo quando já as ultrapassei no meu campo de visão e consegui sair ileso.

 

Os trovões eu os evito fechando cortinas, janelas, tapando a cabeça com um cobertor e os ouvidos com muito algodão e fones de ouvido com música em volume alto.

 

E eu tenho a certeza de que não foi por coincidência nem por mero simbolismo que tudo isto começou dentro da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, naquele final de tarde abafada de inverno, num intervalo entre o frio que viria e o outro, que ficou para trás. Um dia cinzento e feio, daqueles em que a gente se enche de casacos e passa o dia suando, pois frio não há, só há umidade.

 

As paredes da Igreja também suavam, coalhando de gotinhas os desenhos, de antiguidade duvidosa, que mostravam a Via Crucis, pintada sobre os azulejos azuis vagabundos. Nada mais comprovador da ira do Todo Poderoso, da qual eu sempre tive a mania – secreta mania – de duvidar.

 

No momento exato em que o raio atingiu o campanário – o sino não tocou, é verdade, seria uma manifestação terrena demais para Ele, mas pelo menos ficou vibrando – o padre, naquela igreja cheia, olhou justamente para mim, como quem diz “eis ali, filhos, sentado cândidamente como um justo, o responsável direto pelo desapontamento Dele”. 

 

Não discordo de todo da revolta do vigário, pois acredito mesmo que o raio era destinado a mim, a fim de me fulminar ou de me devolver esta minha descarga de raiva íntima e a blasfêmia surda que sempre dirigi à mais alta cúpula (padres, bispos, papas, anjos, mártires, santos e ao Próprio) do poder celestial.

 

Pensei, honestamente pensei, que assim mesmo, por uma espécie de descarga reflexa do raio, eu iria morrer no meio daquela missa. O estilhaço de energia negativa do raio, que afinal não se destinava a mais ninguém que não a mim, iria me atingir em cheio, causando uma explosão interna, a falência múltipla dos órgãos, uma doença.

 

E o apagar das luzes que se  seguiu, que eu credito não a uma falha da Companhia de energia elétrica – geralmente muito eficiente -  mas ao Plano para me liquidar, só agravou a minha situação. No escuro senti tonturas, taquicardia, tremor nas pernas, formigamento nas mãos, falta de ar. Eu, de fato, ia morrer. Não morri porque naquele exato momento caí de joelhos no corredor central, no escuro, e ainda de joelhos me voltei na direção de onde vinha a voz do padre e me arrependi de todos os meus pecados, com uma sinceridade momentânea e oportunista.

 

Imediatamente as luzes se acenderam e, instaurada a trégua em razão do meu espontâneo e apavorado pedido de perdão, pude fugir daquele lugar dominado por Ele e por sua gente vingativa. Tentei voltar em outras vezes à igreja quando os ânimos (meus e Dele) se amansaram, mas as sensações eram sempre as mesmas e desisti, não tentei mais. Deus não mata, mas castiga. Ele, o Velhote,  engatilhou a arma no meio da minha testa e, comovido com meu chôro menos a favor de uma fé sincera do que da minha própria integridade, resolveu me deixar viver. Não sem me cobrar por isso.

 

Tive e tenho medo de enlouquecer.

 

Procurei um médico e ele diagnosticou Ansiedade Paroxística Episódica.

 

Nunca tive habilidade profissional para quase nada. Vendedor de livros (belíssimas coleções de enciclopédias ricamente encadernadas com papel couché e fios e relêvos em ouro, embora ninguém hoje passe as mãos ou a língua sobre os livros para testar os relêvos ou a qualidade do papel), atendente de biblioteca, locadora de fitas de vídeo, cafeteria de aeroporto. Nada, absolutamente nada deu certo.

 

Ansiedade Paroxística Episódica contra igrejas e chuvas, do subgrupo “com trovões”. 

 

Dois meses de Lexpiride e psicoterapia.

 

A terapia se revelou um fracasso, pois o sujeito me encarava ora com cinismo, ora com indiferença.

 

Um dia percebi que ele chegou ao consultório com um carro novo, cinza, importado. A partir dali apresentou mais um componente aos “cuidados” que me dispensava além do cinismo ou da indiferença: a ganância. Sessões mais frequentes.

 

Joguei a caixa de Lexpiride na mesa do psiquiatra e mandei que ele e o terapêuta a enfiassem nos respectivos cus.

 

Fiquei quinze dias praticamente fechado em casa, por conta de um atestado médico que eu próprio falsifiquei em nome do psiquiatra, a fim de estudar outros médicos, de preferência de longe e de uma outra faixa etária que não aquela dos anteriores, pois não queria vínculos entre eles. Imaginava até mesmo os telefonemas que trocariam perguntando “pelo nosso maluco”.

 

Afinal descobri, longe, um psiquiatra, numa cidade da Região Metropolitana. Carro modesto, embora alegre demais e com um ar sacana de quem comia a secretária. Perguntou quem era o médico anterior e porque eu havia resolvido mudar.

 

Eu estava preparado, menti que o outro não era confiável, que se não me enganava o outro era homossexual. Ele balançou a cabeça como quem dissesse que daquele mal ele não padecia.

 

Perguntou se o meu pânico vinha só na igreja e quando haviam trovões. Confirmei, igreja e trovões. Ansiedade Paroxística Episódica, Anafranil e Frontal, psicoterapia. Essa última também foi escolhida a dedo.

 

Como mal conseguia trabalhar, também andava sem namorada.

 

Juntei terapia e romance quando procurei o tal Ambulatório de Saúde Mental e no dia da primeira entrevista para tentar entrar no grupo, conheci Marta, na sala de espera.

 

Ela era mais velha do que eu uns dois ou três anos e tinha um riso nervoso que me preocupava um pouco. E um medo terrível de praças ou lugares abertos, onde houvesse muita gente.

 

Aos sábados, se o dia estava bonito, eu aproveitava e saía sozinho a pisotear folhas no parque.

 

Ela ficava trancafiada em casa, assistindo filmes de romanos, que adorava.

 

Se chovia, o exilado era eu.

 

Algumas vezes em que ela insistiu para me tirar de casa num dia de chuva, eu lhe bati a porta na cara.

 

Numa dessas vezes, antes de isso acontecer, ela riu ao me ver com chumaços de algodão nos ouvidos.

 

Não íamos a casamentos nem a batizados, em igrejas.

 

Mas nos dias apenas nublados e muito frios, sem sinal de chuvas, passeávamos de mãos dadas, pisando nas folhas que caíam das árvores, no chão dos parques desertos.

 

(Do livro O Coro do Vento