música incidental para finalizar este conto: MUERTE DE UN ANGEL,
escrita e executada por ASTOR PIAZZOLLA.
(assista a um vídeo em: VÍDEO - ASTOR PIAZZOLLA)
Venta, nesta noite. Venta muito, nesta época do ano. O inverno já se foi. Então o frio é muito mais por dentro da pele; é um frio interno. Alguém olha para o céu? Eu olho para o céu. Quem caminha pela rua, e olha para o céu, já sente a nostalgia do inverno, como se ele não fosse voltar nunca mais. Quem sabe não volte mesmo, para mim? Pode-se morrer na Primavera ou no Verão. Morrer no Outono é mais bonito, mas não se estará lá para ver. As nuvens acinzentadas, agora, estão indo embora. Dá vontade de gritar, olhando para o céu, não me deixem. Elas correm, quase sempre iluminadas pela lua. É uma lua bonita, mas geralmente cruel. Quase tudo o que é bonito é imensa e irremediavelmente cruel. Dá vontade de gritar não me maltrate para a lua.
Se tivesse morrido e não perdido o braço direito, mastigado pela máquina do elevador, eu estaria melhor. Antes eu me chamasse José, ou apenas Zé, e não João Romualdo como eu me chamo, para não ser chamado de “João-sem-braço”, pelas costas.
Vagar pela Cidade: disso, mesmo ela estando deserta, eu ainda gosto. Se tivesse os dois braços, com toda a certeza eu não estaria aqui. Estaria onde estão todos os outros, por aí. Na serra; numa praia; numa fazenda; jogando vôlei ou escalando um morro. Sei lá. Estou apenas onde Micaela me deixou. Onde deu para eu ficar. Então, agora eu gosto daqui. E vago por aí. Acaba sendo uma solidão quentinha, que me consola. Arrepio-me por piedade de mim mesmo e nisso há um pouco de prazer.
O Verão também tem o seu momento sinistro. Já prestou atenção a esta Cidade, num feriado de Verão? A Terça Feira de Carnaval, por exemplo? Quem anda nela? Só os fracassados, cada qual na sua tribo. Gente velha; gente gorda e feia. Gente pobre. Evangélicos, gritando dentro das igrejas, pedindo a Jesus que lhes salve da doença, da desavença, da falta de dinheiro, do calor. Jesus! Jesus! Jesus! Chamam por ele o tempo todo, desesperados.
Jesus é o cacete.
Estava quente, Micaela foi me buscar. Eu normal; aquele eu que ainda tinha os dois braços. Aquele que eu era há alguns anos. Não este aqui. Um outro. Não o “João-sem-braço” da piada. O primeiro, de antes.
Subimos a serra comigo dirigindo o carrão preto dela. Não era um carro de luxo, mas era um carro bom. Eu nem carro tinha. Ela perguntou, antes da viagem, quer dirigir. Eu disse quero. A direção era perigosa. Curvas. Sujeitos vendendo mel e frutas, na beira da estrada. Plátanos amarelados. Carros parados, gente bebendo água nos belvedere, olhando precipícios. Fotografando pedras, árvores, morros, neblina. Casais. Coisas bestas que sempre se fotografa na beira da estrada.
Avançamos uns cem quilômetros e um monte de beijos imprudentes de língua que foram esquentando cada vez mais. Aquele negócio. Ela olhou-me com um olhar sacana e perguntou quer brincar de uma coisa. Eu disse a ela quero só ver o que vem daí, Micaela. Ela riu e disse olha que eu sou uma diabinha.Eu respondi tá bom, então.
Eu só tinha visto aquilo em filmes. Filmes ruins, acho. E já vivi muita coisa. Ela enfiou a mão por baixo do vestido e foi tirando a calcinha, que guardou no porta-luvas do carro. Abriu o meu zíper. Uma boca bem molhada e uma língua macia. Tudo foi esquentando do meu estômago para baixo. Ondas. Eu segurava firme, com as duas mãos que eu ainda tinha, no volante do carro, morto de medo e de felicidade. Parecia que eu estava sonhando. Era um dia lindo, assim, como aqueles dos filmes. O que eu sentia era bem mais do que isso, mas “lindo”, já define tudo. Pipocava, a minha vida.
O carro subia a estrada em curvas. Preocupavam-me os caminhões e ônibus que passavam ao lado. Da altura onde estavam, poderiam ver tudo o que se passava no nosso carro. E o que se passava no nosso carro eram um homem e uma mulher entregues ao velho, dedicado, delicado e inquieto exercício de mexerem um no corpo do outro; molhando-se um no líquido do outro; provocando suspiros um no outro; num agito de músculos e de suspiros. Era o que alguns bestas chamam de amor e que eu chamo de aplacar o desespero; sufocar a carência. Vida pura, nas nossas veias abandonadas de gente sem qualquer felicidade permanente. Felicidade, ali, só aquela, pequena, que mal dava para o gasto.
Ventava pela janela do carro, um ar gelado. Ela me olhou e disse olha, só temos um ao outro e é só hoje. É só isto aqui. Não tem amanhã. E nem mais nada. Nem patrimônio comum. Nem carro e nem casa. Nem conta conjunta no banco. Nem aliança de casamento. Nem nenê nascendo. Nem merda nenhuma.Só nós dois. Eu olhei para ela, sorri, e disse é, eu sei. Tive medo de que ela acabasse tudo naquela hora e quando eu tenho medo de contrariar alguém sempre digo eu sei.
Nem a humilhação, branca e gelada, que o vento cutuca na manga vazia do braço faltante enquanto eu caminho pelas ruas – inverno ou verão, tanto faz - pode ser comparada à ausência daquelas coisas tão boas, tão preciosas. E nem à lembrança que me tira o sono, deitado no assoalho duro e falhado da minha sala vazia, em plena madrugada.
Um sentimento desses, arrancado do meu corpo e da minha alma, é um atentado contra a própria natureza humana. A minha natureza e a de Micaela sofrem com o afastamento desse corpo e dessa alma que nos alimentaram mutuamente.
Que nos nutriram todos os sentidos, alguns que a gente nem conhecia. E fundiu o cuspe; o sangue e a porra dos nossos corpos. Que chumbou numa bolinha de metal (daquelas de aço, do rolamento dos carros) os nossos dois olhares, por um momento fugaz – ou não – durante o simples ato de nos encontrarmos naquela estrada da serra ou, melhor ainda, no único auge, que foi na cama, durante o amor.
Se tivesse moído os dois braços na máquina do elevador e não morrido, efetivamente, como morri deste jeito, certamente eu estaria muito melhor
(do livro de contos O Romance dos Comuns, inédito em português - já publicado em espanhol, ebook)