Perdi a perna e perdi Miriam. As duas me fazem muita falta, às vezes. Uma falta incrível, dolorida, oca, não preenchida. Estar sem a perna e estar sem Miriam é tudo a mesma coisa. A lembrança dela me revolve coisas que eu nem pensava em sentir por alguma outra mulher, qualquer mulher.
O namoro com Ivone é recente, menos de dois meses. Jamais imaginei que namoraria alguém com o nome de “Ivone”. Para mim sempre foi muito difícil namorar. Namorar é sempre uma trajetória difícil e sentida, o que passa desapercebido para quem não é um aleijado, feito eu. Nós, os inválidos... Adoro dizer “nós, os inválidos...”, pois isso sempre choca. Então nós, os inválidos, tornamos cada relação pessoal uma manobra de guerra. Do outro lado podem estar um cobrador de ônibus ou uma namorada. Como ninguém nos diz nada, temos de adivinhar-lhes a piedade ou o amor sincero.
“Quer que eu lhe ajude a subir no ônibus?” “Vamos nadar na praia? Claro que você consegue!”
Eu nunca quis fazer drama, nem ser o coitadinho. Mas, por incrível que pareça, as crianças ou algumas pessoas cruéis ainda riem, na rua, me apontando. Eu não fico com raiva de ninguém, talvez fizesse o mesmo. E já não sei o que me irrita mais, se a ausência da perna ou a tendência que eu tenho para ficar pensando nisso, de vez em quando. Já perdi a bendita perna há dois anos e a cada mulher que se aproxima de mim, penso em tudo isso novamente. Detesto essa fase, de vencer o receio em relação às mulheres.
Vencer o receio, com Ivone, foi um problema, desde o início. É um namoro difícil. Ela é uma pessoa muito fechada. E eu não tenho a perna esquerda.
Quando eu falo com ela, ela evita me olhar, fica com um meio sorriso nos lábios, não me olha diretamente, como se eu não estivesse ali, ao seu lado. Como se ela fosse o Pinóquio e eu o Grilo Falante, a sua consciência, falando-lhe ao ouvido.
“Pára de ficar limpando a orelha com a tampinha da BIC!”, ela me aporrinha, “isso é falta de educação”.
Eu sei que é, mas eu não a amo, então não me preocupo nem um pouco em ser delicado com uma mulher a quem eu não tenho a menor vontade de mimar. Eu jamais tiraria cera do ouvido com a tampa da caneta diante de Miriam. E ela não era de frescuras.
Quando Ivone resolve me fazer “a pergunta” é porque isso deve estar lhe incomodando desde a véspera, então ela se torna chata, repetitiva, porque sempre me pergunta a mesma coisa.
O que lhe põe sempre no cadafalso. As minhas intenções em relação a ela são boas, mas a minha paciência é muito, muito curta.
“Você me ama?” ela me pergunta todas as vezes em que nos encontramos.
“Amo”, minto. Faz dois meses que nos conhecemos, como posso amar uma mulher em dois meses? Deve ser porque eu sou um perneta e não posso ter o direito de escolher, tenho que me atirar na primeira. As tais muletas.
“Quanto você me ama?”
“Muito, bastante ” digo, impaciente.
“Do tamanho do quê?”, insiste Ivone, querendo um superlativo.
“Do tamanho do hotel novo, aquele que construíram.”
“O Sheraton?” , empolgada.
“Isso, o Sheraton”. Mentira. Tinha pensado num outro mais antigo, na Farrapos, no meio do meretrício, mas um bom hotel, ainda.
“Quantos andares tem o Sheraton?”, Ivone fazendo rosquinhas com uma mecha de cabelos.
“Uns quarenta”, exagero. Ela ri de lado, Pinóquio.
Enchem o meu saco essas histórias de amor e de desamor, são sempre muito comuns. Mas eu tenho uma espécie de necessidade de falar sobre isso, você me entende? É assim que eu purgo as minhas dores ou frustrações. Aliás, todo mundo sempre faz isso. Contamos aos outros histórias que não têm o menor interesse para quem ouve, como se tratasse de dramas inéditos e exclusivos. Amargurazinhas corriqueiras que se espera que sejam levadas em consideração.
Quem me ouvia, nessas horas, era alguém a quem eu chamava secretamente de “Batráquio”, um velho chamado Eustáquio que trabalhava na portaria da Clínica onde eu fazia Fisioterapia, duas vezes por semana, para não prejudicar a perna restante:
“Gostar é fogo, Eustáquio...” Ele balançava a cabeça, sem me dizer nada. Eu tinha vergonha de dizer “amar”, tinha receio de que ele me achasse meio fresco.
“Mas gostar mesmo, não só de foder. Gostar de querer andar de mãos dadas na rua. De escrever versinhos bestas. Você já escreveu versinhos bestas, para alguma mulher?”
“Não sei escrever nada”, ele me respondeu. “Uma vez copiei uma frase que li numa revista de fotonovelas e mandei num bilhete para uma mulher chamada Alceste. O cara na fotonovela dizia ´o meu olhar desabrocha diante do seu, Teresa´.
E eu copiei assim, como ele disse na fotonovela: ´o meu olhar desabrocha diante do seu, Alceste´. E ela gostou.”
“É bonito” eu disse. “Muito bonito”. E ele sorriu, concordando. Achei uma droga.
Eu aproveitava essas deixas para desabafar com aquele inútil que jamais me daria uma opinião interessante sobre o assunto.
“Miriam foi a única mulher, quando eu tinha as duas pernas, em quem me deu vontade de fazer um filho.”
“E porque não tiveram um? Eu sempre gostei de criança.” o imbecil me perguntava, mesmo eu tendo explicado a ele duzentas vezes que ela é casada com outro. Ele nunca prestou atenção ao que eu dizia. Contamos aos outros histórias que não têm o menor interesse para quem ouve...
Não fosse Miriam se prevenir, já teríamos vários. Mas ela se prevenia, ter um filho teria sido uma catástrofe na vida dela. E por pensar nesse filho é que eu gostava de sentir o nosso cheiro, depois que eu a inundava. E ficava ali, olhando para o teto, deitado ao seu lado, nu e ainda ofegante, sentindo o seu pé pequeno e quente encostado na minha perna. Eu não sei até hoje se aquele cheiro fecundo de farinha de trigo molhada que lhe saía de dentro do corpo era do meu próprio sêmen ou se vinha de dentro dela ou se era dos dois, misturado.
Era um cheiro bom e confortável. E ele significava que naquele momento estavam ocorrendo dentro de Miriam movimentos acelerados dos meus espermatozóides em direção aos ovários dela, mesmo que os coitados fossem impedidos de chegar ao seu destino. Eu estava lá com os meus bichinhos soltos dentro dela. A alegria que isso me dava e ainda me dá, até hoje, tem o mesmo efeito de uma droga, eu acho.
De vez em quando eu penso nisso, andando pelas ruas, mesmo sabendo que jamais a terei de volta. Tenho andado por aí, extraviado dela, como se fosse alguém abandonado à própria sorte. Tenho a certeza de que jamais estaremos juntos, como homem e mulher.
E nesses momentos um pensamento assim é como uma broca me atravessando. Num dia desses na rua as lágrimas correram por debaixo dos meus óculos escuros, quando eu pensei nisso.
Há dias em que a perna não me faz a menor falta, passo o dia envolvido em trabalho e números.
E nem eu penso que, sem Miriam, não posso sequer assistir a um filme bom com a sensação de estar preenchido por uma mulher a quem eu ame tanto, como o personagem do filme. Isso eu não tenho mais e a minha impressão é a de que jamais terei.
Eu espero, Miriam, que você saiba disso. E você sabe. Apenas não pode voltar para mim. “Então fique, aí, com ele”, eu falo sozinho, como se ela pudesse ouvir o meu desejo de que ela permaneça onde está e com quem está.
Sem pudores ou sem sentimentos razoáveis por Ivone, eu pude vencer rápido o meu receio, o meu sestro, e a convidei para ir comigo no sábado de manhã até a ortopedia, comprar uma perna nova, pois eu juntei um bom dinheiro para isso.
Tenho uma quantia razoável guardada na poupança e um dia comentei esse valor, por alto, com Ivone, e ela me disse que com a metade daquilo já se daria por satisfeita. Foi uma demonstração gratuita de força, o dinheiro, para Ivone, uma menina pobre e ambiciosa que trabalha num consultório médico fino, situado num bairro de gente besta.
E que me pergunta todas as vezes se eu a amo, é muito insegura. “Amo”, eu digo. Ela gosta que eu fale, faz questão, então para me livrar eu lhe digo “amo e não é pouco”.
E na verdade é muito pouco e eu só a amo quando não tenho mais ninguém com quem conversar. Mesmo assim estou disposto a comprar a perna e me casar com ela, assim, primeiro uma coisa e depois a outra.
A intimidade que estamos adquirindo um com o outro está enveredando por um caminho que não me agrada, o da falta de respeito. E a culpa é toda minha. Do meu desprezo por Ivone.
Um dia eu soltei gases na frente dela e na hora não considerei muito, mas depois em casa pensando no assunto eu morri de vergonha, acho que ela não merecia isso, ela é uma mulher humilde e educada.
Mas, ah, eu estava podre de cansado e aquela vontade me verrumando o estômago, pensei “vou soltar para ver o que acontece” e soltei. Pensei que ela fosse fazer algum rodeio, fingir não ter escutado, mas ela tem o jeito direto das pessoas grossas, e me perguntou de cara.
“Foi você, meu lindo?”
“Fui eu”. Peidei. E quando respondi, de nervoso eu peidei de novo, na frente dela, desta vez fininho, gelado e fedorento, rindo com uma cara sacana.
Ela foi muito compreensiva. “Isso acontece até naqueles banquetes de gente rica, nos granfinos, porque não pode acontecer com a gente? Você não tem por que se envergonhar. Rá-rá-rá”. Eu não estava com vergonha dela, não dava a mínima para o que ela pensava.
Ela nunca foi a um banquete de gente fina, mas se incluiu, solidária, ao meu lado, e me disse que ela também já fez isso em várias ocasiões. E quando ela me bateu nas costas, amistosa, para me consolar, puf, soltei de novo um outro peido bem fedorento, puf, eu estava nervoso.
Tomamos um táxi e fomos até a ortopedia. Saltamos do táxi e o motorista fez a volta por detrás do carro e tentou me ajudar a sair. Eu devo ter olhado para ele com uma cara de quem ia lhe dar um tiro na testa. Ele ficou constrangido e justificou “é que essa porta é ruim de abrir” e me deixou saltar sozinho, apesar de demonstrar alguma impaciência. Atrás, vários carros buzinavam, estávamos no centro da cidade.
Desci do táxi com Ivone e paramos em frente à vitrina, eu fingindo desinteresse, ela desinteressada de verdade.
Eu passara ali pelo menos umas cinco vezes naquela semana, a fim de escolher o modelo de perna e já sabia exatamente qual delas eu queria. Mas resolvi não demonstrar o interesse típico do aleijado que vai ganhar um brinquedo novo.
Ao entrarmos na loja uma moça estava no fundo atendendo a um maneta e colocava alguns acessórios sobre o tampo de vidro da mesa onde ambos estavam sentados. De longe um gordinho afeminado veio caminhando todo ligeirinho, todo bundinha-dura, ao nos ver. Ele vestia um paletó azul-marinho sem gravata, camisa azul-claro e uma calça jeans muito apertada na cintura, o que fazia com que uma parte do cós lhe caísse por cima do cinto.
“Bom dia, meu nome é Welter, vocês aceitam um cafezinho?”
“Para mim sem açúcar”, disse Ivone.
“Não, nada”, eu, seco. Welter já devia estar acostumado a lidar com os recalques dos clientes, pois sorriu e disse “está muito bem, como desejar”.
Ivone mudou de idéia e disse “Valter, por favor, duas colheres pequenas de açúcar”.
“Welter”, o gordinho corrigiu, com um sorriso amarelo e impaciente, como se lamentasse profundamente ter um nome que ele considerava absurdamente bonito e que, no entanto, não o livrava de ser confundido com um prosaico “Valter”, como qualquer vendedor de laboratórios.
Resolvi sacaneá-lo e passei a chamá-lo de “Uelter”. Ele, ao contrário, parece ter gostado da pronúncia, talvez nunca tivesse lhe ocorrido usá-la para não ser mais chamado de Valter.
Então ele fez uma longa e tormentosa exposição sobre as próteses endoesqueléticas, demonstrando que havia decorado o “manual dos decepados” bem direitinho. Deteve-se numa específica, que tinha um tal sistema piramidal, como se falasse do motor de um carro. Certamente era a mais cara.
“Veja”, ele dizia mexendo naquela perna de robô como se fosse uma tesoura de podar, agitando os dispositivos dela de uma maneira brusca, para cima e para baixo, “o sistema piramidal e esses adaptadores de quatro parafusos permitem que se possa ajustá-la de qualquer jeito, facilitando a adução ou a abdução, a extensão e a flexão além da translação frontal e até a lateral”
Que merda, “adução” e “abdução”, “translação frontal” e “até a lateral”, eu estava me sentindo como se eu fosse a bosta de uma bicicleta.
Ivone, mesmo sendo uma tapada, percebeu a minha irritação e fingia ler o manual de uma cadeira de rodas, enquanto bebia o café frio. A moça que atendeu o maneta estava agora livre e sorria de maneira idiota, parada ao lado de Welter, como se fosse uma daquelas moças de programas de auditório, que são pagas apenas para sorrir. A diferença era a de que esta era feia, sem bunda e sem peitos.
Welter continuava, fazendo o seu melhor papel, o de técnico especializado com treinamento na própria fábrica, combinado com psicólogo especializado no trato de deficientes físicos. “O ajuste de rotação também é possível em todos os níveis e pequenas correções de altura podem ser feitas, está vendo?”, a voz era infantil.
Então eu lhe interrompi irritado e perguntei, errando de propósito o seu nome: “Valter, se alguém lhe arrancasse a perna, qual destas você preferia usar?”
Ele foi pego de surpresa e me corrigiu baixinho dizendo “Welter” e, dando uma gargalhada alta, jogou-se para trás na cadeira, a fim de ganhar tempo e pensar em alguma coisa com que se livrar da amargura deste aleijado.
“Certamente que se fosse para mim, eu levaria essa aqui”, ele disse, suando e retornando ao tom habitual, como quem está vendendo um secador de cabelos.
“Então eu vou levar essa”.
Fomos para casa em silêncio no táxi. Ivone parecia arrependida de ter se envolvido com alguém tão problemático e sorria de lado, sem me olhar, provavelmente estudando uma forma de se mandar. Eu ia pensando na expectativa que me gerara comprar aquela perna e ficava triste em constatar que as minhas grandes realizações agora consistiam em comprar um trambolho como esse. Como quando eu era criança e ficava esperando o Natal chegar por causa de alguma bobagem que havia encomendado aos meus pais e, quando recebia o que foi pedido pensava: “é só isso? Logo essa porcaria vai estar no lixo”. Era só chegar em casa e desembrulhar o presente.
Pensar em Miriam, naquele momento, me irritava, mas eu pensava assim mesmo.
Era como me jogar no buraco abissal, de braços abertos, e sentir a água do oceano me entrando pelos ouvidos. Eu via a parte de baixo do casco do navio que estava lá em cima, na superfície, e ouvia as vozes dos marujos gritando no convés, ouvia a sua lida. Mas estava aqui, no fundo, sem poder me mexer, por causa de uma perna que me foi arrancada.
Miriam estava no navio, tomando sol no deque.
(do livro Margaridas Forjadas)