Entregou a ela um envelope cinza, de papel vergé, no qual havia uma fita vermelha. Parecia uma carta. Alguém na loja tentou inventar um embrulho para presente diferente dos demais, original.
Ela não esperava por aquilo, claro.
- Por que isso, agora?
- Isso o que?
- Que pergunta ! “Isso” é o presente que você acabou de me dar.
- Páscoa.
Tocava Chopin, um Noturno. O sábado transcorria mormacento, mas era outono. Nada combinava. Provavelmente viria muita chuva, no dia seguinte, Domingo de Páscoa. Noé que tratasse de reunir a bicharada na Arca. Muita chuva seria necessária para arrancar o outono do seu esconderijo.
- A Páscoa é amanhã. E isso aqui não me parece chocolate.
- Você preferia chocolate? - ele estava contrariado. Ela agia como uma gorda gulosa, que esperava pelo chocolate muito mais do que por um presente original como aquele.
- Não é isso. Eu só queria entender o presente.
- Não precisa entender o presente. Presente não se entende, recebe-se. Hoje é Sábado de Aleluia. Então fica como um presente "de Sábado de Aleluia". Algumas sociedades malham o Judas neste dia. Batem num boneco de pano. No Rio de Janeiro ainda fazem isso.
- Você tem mania de surpresas, né, Benjamin?
- Benjamin Nieto, um vino para sorprender, com carácter y autenticidad.
- Você não é um vinho. Podia citar uma frase mais autêntica do que um slogan besta, inventado pelo dono de uma vinícola. O namorado da Andy lê poemas para ela.
- Gosto desse slogan e do vinho. Eu sou um homem simples. O namorado da Andy é um filhinho-de-papai rico que fez um curso fajuto na França. Ela é uma psicóloga riquinha que mia como uma gata, quando fala. Tudo neles é falso. Ela nem se chama "Andy". Se chama Andréia.
- Ele estudou na Bélgica. É só um apelido. E a Andy não mia.
- Mia, sim. E também falam francês na Bélgica. Fodam-se, os dois.
- Humor de Sábado de Aleluia, hein?
- O humor de sempre.
Ela abriu o envelope. Dentro havia uma carteira de couro e, dentro dela, um cordão preto de seda com uma bolinha azul presa a um elo de ouro.
- Que bonita essa bolinha....
- Essa "bolinha" é uma turquesa. E esse é o Colar da Turquesa.
- De Turquesa, Benjamin.
- Não, é da Turquesa. Quer ouvir a história desse colar?
- Quero.
- Todo mundo presume que “turquesa” seja apenas o nome de uma pedra preciosa, certo?
- Na verdade eu não sei essa resposta...
- Então porque você não se limita a mentir, como todo mundo faz, e responde apenas “certo”, como se soubesse a resposta?
- Certo, Benjamin, certo. Todo mundo presume que esse seja apenas o nome de uma pedra preciosa.
- A Turquesa é uma pedra preciosa, composta de Fosfato de Alumínio, Potássio, e que também contém Cobre. Na Escala Mohs de dureza, ela atinge os graus de 5 a 6, é opaca e apresenta-se celeste, que é o caso dessa que está no colar que acabei de lhe dar. Há também algumas nas cores azul-esverdeada ou maçã.
- Você parece querer me impressionar. Un vino para sorprender...,etc
- Peguei tudo isso na Internet, está ao alcance de qualquer imbecil que saiba pesquisar num mecanismo de busca.
- Continua.
- Acontece que o que poucos sabem, e que não está em lugar algum da Internet – pode procurar - é que “turquesa” é um título nobiliárquico, como “duquesa”ou “condessa”, e decorre de uma linhagem de nobres da Turquia, que é a antiga Pérsia. Agora o grand finale...
- Puta merda, onde você estudou tudo isso?
- Você só se importa com os detalhes bestas. O que importa onde eu estudei? Ouça o final.
- Não saio daqui antes de você me contar.
- Pois a Turquesa ninguém mais era do que a filha bastarda do Imperador Xerxes, persa, feito agora no cinema pelo brasileiro Rodrigo Santoro, no filme 300. Xerxes mandou (e, com isso, matou) muito mais do que 300 homens para extrair das entranhas da terra o mineral azulado com o qual pretendia homenagear, ainda que em segredo, a sua única e lindíssima filha cujos olhos eram, adivinhe de que cor...?
- Azuis, como a pedra !
- Errado. Pretos como a noite. O azul era metafórico. As estrelas que pairavam sobre a Pérsia, na noite em que ela nasceu, essas coisas.
- Qual o nome da princesa?
- Degá. Eli Degá.
- "Degas", como o pintor?
- Mais ou menos, apenas sem o ‘s’ no final.
- Degá, de olhos negros...sei...
- O colar que ele fez com a única pedra encontrada, esférica, ficou conhecido como "O Colar da Turquesa", e para virar ‘turquesa’, também a pedra, foi uma questão de dois ou três séculos. Até nas Escrituras Sagradas há referências a ela. Ligadas a Maria Madalena, inclusive. Ah, e inclusive no Alcorão.
- Sério?
- Não.
- Como assim "não", Ben?
- Soy Benjamin, um vino para sorprender, com carácter y autenticidad.
- Não entendi nada.
- Nada disso é sério, acabei de inventar.
- Pra que você me trata assim, feito uma idiota?
- Capacidade de sonhar. Você não tem. Como vai conseguir amar alguém feito eu?
- Você precisa se tratar.
- Eu sei.
(do livro de contos O Romance dos Comuns, inédito em português - já publicado em espanhol, ebook)