Sentada no pátio do restaurante, em certa hora levantou-se do chão uma folha seca e ela correu pela quina da calçada, o meio-fio, e foi sendo soprada, de leve, pelo vento. Areia fininha, junto com ela.
O calor insuportável e abafado se foi ontem à noite, depois da chuva. Aquele temporal que destelhou casas e derrubou árvores sobre os carros, segundo o noticiário.
A gente nem fica sabendo dessas coisas quando elas acontecem nesta cidade, pois elas sempre acontecem com os outros, nunca com a gente.
Sentada, ali, inerte, eu não estava indiferente ao vento fresquinho; nem à folha correndo soltinha; nem à tarde bonita.
Sentada, ali, eu estava inerte. Mas não indiferente.
O rio corria lá embaixo, onde não se enxergava. Os carros buzinavam e enfumaçavam. As pessoas entravam nos ônibus, e se empurravam, e faziam filas nos bancos. Crianças saíam dos colégios.
Tudo andava do mesmo jeito há dezenas; centenas de anos. E eu, no meio daquela tarde tão bela como um hino, ou como um Noturno de Chopin. Bela como um caderno novo; uma calça de brim novinha. Uma tangerina geladinha, descascada, no prato verde. As unhas do pé, recém-saídas da manicure, na véspera da festa. Cada qual com a sua cor e a sua função na vida.
A tarde me seduzia, naquele momento da vida, como homem algum conseguia.
Os homens haviam se tornado para mim uma mancha, um cenário. Uma decepção. Coisas. Eram como a mancha do copo suado, deixada sobre aquela mesa do restaurante, cor de madeira de demolição. Olhei para a mancha redonda do copo e sorri, sozinha.
Homem, aquilo.
Procurei a folha seca, mas ela já tinha saído do meu campo de visão. Alguém ligou o rádio e Roberto Carlos cantava, longe, uma música velha
Índia seus cabelos nos ombros caídos/negros como a noite que não tem luar seus lábios de rosa para mim sorrindo/e a doce meiguice desse seu olhar....
O vento; o mormaço; a vida; o chope; as pedras; o carro parado sob as árvores, com as portas abertas para ventilar; o Continente, enfim,
.....Quando eu for embora para bem distante/e chegar a hora de dizer adeus/Fica nos meus braços só mais um instante/deixa os meus lábios se unirem aos seus/Índia levarei saudade da felicidade que você me deu...
Então ele chegou e sentou-se à minha frente. Bateu com o indicador no vidro do relógio, para mostrar o atraso. Uma letra M bordada no bolso branco da camisa muito branca. O gel nos cabelos alisados para trás; uma entrada grande e uma testa ampla. Um anel de prata na mão esquerda, com uma pedra vermelha. Cabelos, poucos, no peito, perto do botão desabotoado. Mocassins. A barra da calça dobrada. Sem meias.
- Se não fosse isso, tudo estaria bem, a culpa não foi minha – ele me disse.
Eu sorri, tranqüila, e concordei, como se eu estivesse dormindo e alguém me dissesse “dorme, não foi nada”
– A culpa não foi minha - ele repetiu e eu concordei.
Falou mais, e bebeu água mineral num copo muito claro e fininho.
Levantou-se e foi embora.
Fiquei ali mesmo, folheando uma revista que já tinha lido.
Naquela tarde, quando um barco buzinou, lá embaixo, no rio, a porra da coincidência do mundo, veja, coincidência que não escolhe dias para as coisas tão belas, e tão puras, e tão sombrias, e tão doces e tão más; foi a mesma tarde em que o carro prata dele entrou direto na curva do paredão de pedra da Serra, e bateu, e capotou, e amassou a sua cabeça contra a coluna no canto esquerdo do para-brisas.
Naquela tarde eu tinha saído dali, depois que ele se levantou e foi embora, e o Roberto Carlos cantava Índia, e todo o resto, o meu sorriso; a folha, a areia fininha, e a marca do copo na madeira de demolição, tudo isso se apagou para sempre.
A diferença que fez, tudo isso, na minha vida, acabou sendo unicamente aquela tarde.
O resto seguiu.
(do livro de contos O Romance dos Comuns, inédito em português - já publicado em espanhol, ebook)