Nós dois paramos, indecisos, ainda trocando gentilezas, na entrada da casinha velha, e eu lembro de ter dito a ela “vá você na frente”, com a cerimônia própria de quem deixou de conviver. Mas não de se amar.
Tínhamos vergonha, agora, um do outro. Vergonha das coisas ditas nos momentos de raiva, ditas ao telefone ou por carta, como convém aos covardes. E a covardia do xingamento à distância não era falta de coragem, mas se dava porque eu e ela, na verdade, não desejamos o resultado que foi a nossa separação, muito recente, menos de um mês, embora já bem incômoda.
O objetivo era o ferimento besta dos apaixonados, dizer coisas que fizessem com que o outro ficasse triste no momento de ouvir, ou com pena. As encenações e as dissimulações do jogo amoroso que, em certas ocasiões, acabam determinando o seu fim, por erro de mão, como quem põe fermento demais ou de menos num bolo. Essa era uma dessas ocasiões. Nas últimas semanas eu andava confuso, também ela parecia estar. Há dezesseis dias não nos víamos, assim, como agora, ao vivo.
Reconheço que ela, sempre ela, insistia para que conversássemos ao vivo, como gente grande, o que eu sempre evitei a pretexto de não saber o que se passava comigo. Andava por aí sentindo muitas saudades, mas também havia momentos em que a solidão e a distância dela me davam extremo conforto.
Num dia desses de muitas saudades – e não de conforto - eu telefonei.
“Vamos nos encontrar?”, eu. Silêncio. Pensei que ela me diria, enfática e definitiva, alguma coisa sobre não ser mais necessário nos encontrarmos, já falamos tudo, etc. Eu me enganei, ela concordou logo. Mulheres envolvidas com alguém dificilmente são enfáticas ou definitivas.
“Vamos”, me respondeu seca, “na Maria Quitéria ou nos Velados?”, perguntou, pensando na praça ou no museu.
“Vai ser em outro lugar”, eu.
“Por mim tudo bem, onde você quiser”. Ela modulou a voz para não parecer muito empolgada. E eu tenho a certeza de que ela pensou que eu ia sugerir ou levá-la direto a um motel.
Quando eu parei o carro na esquina combinada, ela já estava lá e vestia uma calça comprida e eu gosto muito dela de vestido ou de saia, sempre gostei, e ela sabe disso, mas não dei muita importância, não tomei aquilo como se fosse uma resistência a me agradar, a aproximar-se novamente de mim.
“Eu pensei que você viria com um vestido”, eu disse a ela, sem querer, em voz alta.
Ela sorriu, mas apenas com os olhos, olhando para a frente. Então entrou no meu carro e rodamos, rodamos, rodamos, quase sem conversar, ouvindo o barulho do motor e o rádio num volume quase inaudível, naquele constrangimento. E ela certamente se perguntando aonde é que a gente estava indo, pois o caminho lhe era estranho, não era um dos nossos.
Quando chegamos ao lugarzinho, de uma pobre e pouco freqüentada periferia, eu parei o carro e apontei-lhe a casa. Dificilmente ela passaria, aqui, algum dia, por vontade própria. Ela nunca foi rica, mas sempre andava para outros lados, nesta cidade.
“Foi aqui que eu morei, na minha infância. Estão vendendo, peguei a chave na imobiliária, não sei quem é o dono atual”. Um dia eu passei aqui por mero acaso, num daqueles meus roteiros aleatórios, e vi um cartaz de papelão com o “vende-se” e o telefone da imobiliária.
Ela olhou, meio espantada, para aquela ruína. Eu, depois de anos, revi o hidrante do Corpo de Bombeiros instalado há anos na frente da casa, e aquela geringonça de ferro vermelho sempre fora a motocicleta onde eu passava as tardes empoleirado, brincando.
Entramos no pátio. Na entrada, o murinho, onde antigamente eu subia com dificuldades por causa das coroas-de-cristo, me pareceu incrivelmente reduzido, mal me batia na barriga. Dentro daquele cercado de tijolos com floreiras em cima, ao lado da entrada da casa, a minha mãe há trinta anos plantara rosas e outras flores das quais eu nunca soubera os nomes. Ela , a minha mãe, chamava aquele lugarzinho de “jardim” e nele o meu pai mandara botar um portãozinho de ferro, para resguardar aquele lugar das crianças arteiras, portãozinho que pintavam de branco todos os anos, na época do Natal.
Enfiei a chave na porta da frente, que na verdade ficava na lateral da casa, e notei que a madeira estava podre, mas a fechadura ainda funcionava. Entramos na casa e as paredes estavam empoeiradas, o chão cheio de baldes de plástico sujos e de jornais ressecados. Teias de aranha. Um cheiro de mofo.
Foi assim a nossa chegada naquele resto do que foi a minha casa em criança. Ali eu sonhara muito acordado com coisas que eu apenas supunha existir e também sequer imaginara as outras tantas que tive de enfrentar mais tarde na vida.
Eu e ela ainda mantínhamos a pose da briga, do nosso ressentimento. Saí a caminhar pela casa e a falar em voz alta com ela, mais para provocar o eco nas peças vazias do que pela necessidade de dizer alguma coisa. Não havia o que dizer a não ser besteiras.
Ela encostou-se na parede do corredorzinho que cortava a casa e para o qual davam as portas dos quartos e do banheiro. Apoiou-se no umbral da porta do pequeno banheiro e ficou ali, parada, olhando para a parede que ficava em frente. Não dizia nada, não respondia aos meus gracejos meio forçados, cheios de ecos por causa do vazio da casa.
Caminhei em direção à cozinha e, ao passar por ela, que ainda permanecia encostada na parede e olhando para o nada, notei que a casa agora se tornara pequena para mim, eu nunca conseguiria passar por aquele corredor sem esforço, sem roçar na pele dela. Ela jamais usou perfume, mas a sua presença e o calor da sua pele eram mais do que suficientes para provocar reações que me quebravam qualquer resistência. Ao passar me esgueirando pelo corredor apertado, o meu ombro esquerdo roçou no peito dela e eu senti o seu coração batendo, ali mesmo na minha pele, pela manga da camisa.
Estaquei na frente dela, muito próximo, e, numa reação estranha, empurrei a cabeça dela para trás e mordi de leve a parte de baixo do seu queixo, como um vampiro que experimentasse com os caninos a resistência da pele na jugular da vítima, antes de perfurá-la definitivamente. Ela não resistiu, se deixou morder, de olhos fechados. Tive a impressão de que ela emitiu uma espécie de ronronado, como uma gata, o que sempre fez no passado, quando estava abraçada em mim e enlevada pela ternura dos nossos tantos momentos.
Retornou a cabeça à posição normal, me olhou bem dentro dos olhos e nos abraçamos, comovidos, sem jeito. O coração dela agora batia mais forte, encostado no meu peito, e eu sentia a ansiedade na respiração e no suor dela. Ela deitou a cabeça no meu ombro e suspirou, aliviada, e não me disse absolutamente nada. Ainda assim eu lhe respondi, meio rouco e inflado pelo poder daquele sentimento silencioso:
“Eu também”.