photo-1505672678657-cc7037095e60.jpg

O Coro do Vento

 

 

“Ó Fortuna, és como a Lua

 mutável, sempre aumentas

 e diminuis;  a detestável vida

ora escurece e ora clareia  por

brincadeira a mente;  miséria, poder,

ela os funde como gelo.”

 

 

(CARL ORFF, “Carmina Burana”, ária “Fortuna Imperatrix Mundi”)

 

 

Engraçado, nunca fui de lua. Sempre fui de vento.  Vento frio, de inverno, o Minuano, vento do Pampa, que gela até a alma. Criança, sempre gostei da vastidão, embora sempre tenha habitado a cidade. Mas gostava e até hoje gosto do vento.

 

E Carmina Burana tem as feições do vento,  por isso gosto tanto de ouvi-la. Aperto o botão do aparelho de som e observo a gavetinha onde devo inserir o cd se projetando para fora, sem pressa. Encaixo o disquinho metálico na gaveta e a empurro para dentro, com o dedo, pois não tenho paciência de apertar o botão e vê-la entrar de novo, calminha.

 

Tive o cuidado de perguntar ao Bom Homem se ele se importava de ouvir Carmina Burana e ele disse: “faça como o senhor quiser”.  Insistia em me tratar por  “senhor”. No inicio pensei que fôsse para me irritar, e irritava mesmo. Depois entendi que era um homem bem-nascido, de modos gentis. Ele anda, com o agravamento da situação, meio agitado, e isso não é bom. Não quero revoltas, não quero ódio. Tento acalmá-lo.

 

Não quis perguntar a ele se sabe o que é Carmina Burana, com receio de ofendê-lo. Um homem como ele, muito rico, viajado, deve ter ouvido ainda criança. Não pergunto, pronto, tenho vergonha. Temos nos respeitado, como cavalheiros, dentro do possível. É um fidalgo, ele. Gosto da palavra fidalgo, que me lembra figo em calda. Fígado. Pois o Bom Homem, apesar de tudo, se contém.

 

Expliquei a ele tudo, minhas origens sociais e culturais, meus envolvimentos políticos, a causa que represento, minha formação acadêmica, tudo mesmo. Nada pessoal, digo a ele.

 

Ele faz que sim com a cabeça, mas não se conforma, vejo, e dentro dele há uma explosão de dor ou de  ira, ou os dois, que haverão de lhe fazer mal. É inevitável.

 

O coro de Carmina começa a encher a sala e eu me arrepio. É coro de vozes, coro de anjos. Vento. Eu gostava mesmo do vento, quando era criança.

 

Posso fumar, pergunto; “a vontade”, ele diz.

 

Pois eu ficava em algum lugar aberto, especialmente no outuno, após a chuva,  e ficava a olhar o céu, fascinado. As nuvens grossas, cinzentas, pesadonas,  correndo no céu,  tocadas pelo vento como bois no céu, tocados pelo peão. Eu e as minhas comparações rurais.

 

Ficava, sozinho, menino, olhando aquela revolução no céu e, baixinho, murmurava um coro de vozes, as minhas próprias vozes, sempre com os olhos cheios de lágrimas, a pele arrepiada de emoção. Gostava de pensar que era eu o causador de tudo aquilo, como Moisés abrindo o Mar Vermelho. Minha vida ali era o centro do Universo, bramiam os mares, sopravam os ventos, porque EU queria. O poder era todo meu. Gostava de fantasiar assim. Na verdade,  acreditava que era um pouco iluminado. Um filho de Deus. Não comparável a Cristo, embora sempre gostasse Dele, porque Sua superioridade vinha de uma sapiência que eu sabia não possuir.

 

Eu era filho de Deus só nas “pirotecnias”. Incendiar a mata, fazer correr o vento, apontar o dedo a alguém e fazê-lo cair fulminado. Mistura de super-herói  com profeta do Apocalipse.  

 

Isso foi na infância, antes das grandes decepções. O Fortuna, velut Luna/statu variabilis, semper crescis/aut decrescis;vita detestabilis/nunc obdurat/et tunc curat/ludo mentis aciem, egestatem,potestatem/dissolvit ut glaciem.

 

Fortuna, a Imperatriz do Mundo. Sempre gostei de ouvir cantarem a palavra potestatem. Potestade. Poder. Me arrepiava, mesmo sem saber o que era. Lembrava majestade.

 

Lembro que ouvi pela primeira vez essa música, já adulto,  num documentário na tevê. A cena era impressionante. Durante a guerra, na Bósnia acho, as pessoas precisavam atravessar uma ponte correndo para passar de um lado a outro da cidade. O problema é que haviam franco-atiradores no alto dos prédios, tentando acertar quem passasse pela tal ponte. No momento em que filmaram, uma menina de uns dez anos tentava, com uma boneca no colo, atravessar desesperadamente para o outro lado. E o atirador tentava acertá-la. O fundo musical: Carmina Burana. Meus olhos se enchem de lágrimas só de me lembrar daquilo. 

 

Pensei naquela ocasião: é o meu coro. O coro do vento.  Coro de vida e da morte. Acho que eu já cantava isso antes de nascer. Ao nascer, acho, alguém cantou para mim.

 

Como quando nasceu o meu primeiro filho e, sujo de sangue e placenta, saiu das entranhas da mãe. Olhei bem de perto, fundo, naqueles olhinhos cinzentos, como são cinzentos os olhos de um cão ou de um gato recém-nascidos.  Meio sem expressão. Abobalhados pelo ingresso na existência. Confesso que não senti nada, naquele momento, nem amor, nem emoção, nem nojo, nem medo. Nada, apenas toquei sua mãozinha com a ponta do meu dedo indicador, pra ver se haveria reação. Não houve. Apenas piscava, em slow motion, como a se recuperar das horas em que lutou - e lutou muito - pra encontrar o ar aqui de fora. (CARMINA BURANA: Sors immanis/et inanis, rota tu volubilis,status malus, vana salus - Sorte monstruosa e vazia, tu - roda volúvel - és má, vã é a felicidade).

 

Ouço a música e relembrando do parto penso que se eu tivesse prestado atenção ao meu outro menino, eu mesmo, na hora do parto do meu filho, teria ouvido exatamente esse coro. O vento que habita o meu interior, então, teria se revoltado, levantando folhas, derrubando postes, arrastando carros, elevando a maré e ribombando forte, como faz a água do mar contra as pedras da Praia de Iracema, em Fortaleza, que eu  jamais esquecerei. O vento não encontraria, eu sei, espaço em mim e subiria pela minha garganta, pelos meus ouvidos, pelas minhas narinas, e me rasgaria ao meio e de mim brotaria água, água de chôro. Uma parte de mim teria, ali, nascido. (CARMINA BURANA: Hac in hora/sine mora/cordum pulsum tangite; quod per sortem/sternit fortem, mecum omnes plangite! - Nesta hora/sem demora/tange a corda vibrante; porque a sorte/abate o forte, chorais todos comigo!)

 

Me apaixonei por essa música. No inicio, pensei que Carmina Burana fôsse uma mulher e, imediatamente, me apaixonei pela sua figura. Uma mulher russa, talvez tcheca, linda, branca, de faces avermelhadas, cabelos cacheados, vestido de época, inteligente, pura, à frente de seu tempo. Carmina, como Carminha, Carmencita, ou a Carmen, de Bizet. Mas não.

 

Pergunto ao Bom Homem se ele conhece o significado do nome, passando por cima do meu receio em saber se ele ao menos sabe do que estou falando. E sabe. “São cantos medievais, inspirados num pergaminho encontrado na biblioteca da antiga Abadia de Benediktbeuern, na Baviera. Significa ´Canções de Benediktbeuern´”, diz, com uma pronúncia que me parece perfeita, a mim que não falo alemão. 

 

Se fôsse nos primeiros dias acreditaria que o esnobe estava me desafiando, se sobrepondo à minha condição de dominador da situação. Mas não é assim que vejo agora. O homem sabe. Ponto. Afirmou seguro de sua resposta e com o seu olhar de para-que-tudo-isto?

 

O senhor é um homem inteligente, digo a ele. “O senhor se engana. Não se trata de inteligência, é apenas cultura”, devolveu. Só pude responder o senhor tem razão,  e enfiei a viola no saco. 

 

Olhei mais uma vez para aquele homem excessivamente branco, maduro, de pijama, deitado sobre o sofá. Ele me olhou sem absolutamente nada no olhar e voltou a se recostar, com os olhos fechados. Por um breve momento enxerguei um chumaço de algodão em cada uma das narinas dele. Afastei o pensamento. O pijama, fui eu quem trouxe. “Preciso de uma roupa decente para dormir, se o senhor não se importa de providenciar” disse-me ele, logo que chegou aqui.

 

Eu, que ainda o achava arrogante, disse com ironia indique o tamanho e será providenciado “por nossas mucamas”, batendo palmas em seguida, como a chamar as empregadas.  Depois me arrependi de ter feito aquilo e falado em “mucamas”. Trouxe o pijama e, ao vê-lo se vestindo, cheio de pudor e de dignidade, não pude deixar de sentir comoção por aquele homem que poderia ser meu pai, se eu ao menos tivesse um. Um homem velho e rico. (CARMINA BURANA: Fortune plango vulnera/stillantibus ocellis, quod sua michi munera/subtrahit rebellis - Choro as feridas da Fortuna/com os olhos rútilos;pois que o que me deu/ela perversamente me toma).

 

A ópera está agora nos seus movimentos mais suaves. Toca o telefone e o Bom Homem, sem sobressalto, abre os olhos.

 

Atendo. É o Teixeira. “Oi”, ele diz, “sou eu”. Sei, digo, como está a coisa? “Muito mal. Botaram o sobrinho do Goldman a tratar com a gente. O cara é dentista, metido a besta. Dono da situação, manja ? Tá brincando com fogo...”

 

É  Goodman, corrijo. E o Xúber, o que acha, pergunto. O nome é Schubert, como o compositor, mas aquele lá é a ralé. Para mim é  “Xúber”. “O Schubert acha que a coisa vai acabar em você” me diz o Teixeira, como quem diz, te prepara.

 

O Bom Homem me olha, desta vez com algo no olhar, como se adivinhasse a conversa. O Xúber é uma bicha enrustida e precipitada, alfineto, sabendo que ele sabe que eu sei que o cara é veado, primo dele. “Precipitada e má, muito má, você bem sabe”, me diz, irônico, ameaçador.

 

“Temos menos de uma hora, depois o bicho pega. É o prazo”.

 

Amor em tempos de cólera, digo, desligando o telefone na cara dele. “Amor em Tempos DO Cólera” é o livro do García Marquez, digo, olhando para o Bom Homem, como se ele não soubesse. Goodman, é o sobrenome. Bom Homem. Ele não diz nada.(CARMINA BURANA: Estuans interius/ira vehementi/in amaritudine/loquor mee menti: factus de materia, cinis elementi, similis sum folio, de quo ludunt venti. - Queimando por dentro/com veemente ira, na amargura, falei para mim mesmo: feito de matéria, da cinza dos elementos, sou como a folha/com quem brincam os ventos.).

 

Quando ouço o coro em meus ouvidos, o meu próprio coro ou esse de Carmina, me encho de grandeza; a grandeza do Universo se instala em toda a minha corrente sangüínea. Fico poderoso (potestatem), fico fraternal. A Grande Fraternidade Universal encarna em mim e quero ajudar o ser humano. Eu mesmo me impressiono com o amor que sinto pelas pessoas, às vezes. Amor de agasalhar, passar a mão no rosto. Lavar os pés do leproso, humildade e amor, como Jesus. Como o Papa. Amar ao Próximo ( e Deus? e Deus?) sobre todas as coisas. Fazer ribombar o trovão. Essa ópera, grandiosa e grande, se arrasta por mais de 60 minutos. Perdoai-os, Pai, eles não sabem o que fazem. Já estou todo arrepiado. O menino, a olhar para as nuvens correndo no céu.

 

Pergunto ao Bom Homem se ele se importa que eu faça (realize, eu disse, me policiando ) uma limpeza nas minhas armas, tenho algumas, estão precisando. “As armas não são perigosas”, diz, “os homens é que são”.  Rio, discretamente é claro, mas rio, da cerimônia dele. Tenho, nesse pouco tempo, uma afeição por esse homem e seu pijama, por seus gestos e palavras teatrais.

 

As coisas estão se  encaminhando e vão ser resolvidas a bom termo, não se preocupe, digo para ele. Ele apenas dá de ombros. O senhor deve ter a idade do meu pai, digo, como se eu soubesse qual é a idade do meu pai. “Possivelmente”, responde, vaidoso, sem revelar sua idade. (CARMINA BURANA: Feror ego veluti/sine nauta navis, ut per vias aeris/vaga fertus avis; non me tenent vincula, non me tenet clavis, quero mihi similes, et adiungor pravis. - Sou levado/como um navio sem piloto, como através do ar/um pássaro à deriva; nenhum vínculo me prende, nenhuma chave me aprisiona, busco meus semelhantes, e me junto aos insensatos.).

 

Uma pistola semi-automática. Pistola automática não existe por aí, só  na crônica policial. Calibre .380 ou 9mm ACP. Aperto o retém do carregador, que salta na minha mão. Com o carregador na mão direita, vou extraindo as balas, uma a uma, impulsionadas pelo polegar, como se debulhasse milho. Vão caindo uma a uma, sobre o tapete, para alívio da mola. Deixo o carregador sobre a mesa e apanho a pistola com a mão direita. Admiro o seu cabo de borracha, confortável, de boa empunhadura. Há uma pequena medalha de metal imitando bronze em cada uma das talas da empunhadura. Nas medalhas, o desenho em relevo de um leão sentado sobre as patas traseiras, com a pata direita da dianteira levantada. Grandioso. As medalhas originalmente não são daqui, são de outra empunhadura, importada. Colei porque gosto do desenho do leão (potestatem). Um trabalho demorado.  Retirei-as da empunhadura original. Marquei com ferro quente estas aqui, até formar um nicho redondo, no formato das medalhinhas, onde as colei com cola super. Personalizado. Não há outro igual. Sou como o meu convidado, gosto de coisas boas. Armas, para mim, não são instrumentos de violência, como apregoam. São instrumentos de poder, de precisão. Máquinas de decidir destinos. Máquinas de distrair.  Relógios suiços. Canetas. O coldre de couro, mandei fazer no Interior de São Paulo, pelo correio, com as minhas iniciais. Santa Rita do Passa Quatro. Não faço a menor idéia de onde fica. Sabe onde fica Santa Rita do Passa Quatro, pergunto a ele. “Não senhor”, responde, sem abrir os olhos. Ainda segurando o cabo puxo o slide, num movimento rápido e decidido e, para surpresa do Bom Homem que agora abre os olhos com o inconfundível barulho de “engatilhar” uma pistola, há ainda uma cápsula na câmara. Este tipo de arma, explico, não dispara mesmo com uma bala na câmara, se o carregador não estiver no seu lugar. Além disso, há o decoking level , uma trava, que, acionada como está essa aqui, faz o cão percorrer apenas meio caminho até o seu destino: a agulha. Não batendo na agulha, por consequência, não aciona a espolêta que irá incendiar a pólvora e impelir a ponta  de chumbo contra o coração de alguém. Mas, cuidado, não são todas as pistolas que possuem tal segurança, continuo ao Bom Homem, como se ele fôsse comprar uma pistola igualzinha hoje à tarde,  no shopping.  Algumas pistolas, americanas, de polímero, disparam mesmo sem o carregador. Tenho uma assim, também. Essa menor aqui, mostro para ele. “Tenho um revólver”, limita-se a dizer, sem qualquer interesse pelo assunto, “mas nunca quis usá-lo”, deixando nas entrelinhas que houveram algumas oportunidades.

 

Ofereço um copo de leite e ele aceita. Vou à cozinha e apanho. Me surpreendo, atônito, procurando uma bandeja para levar o copo a ele. Perdoai-os Pai, eles não sabem o que fazem. (CARMINA BURANA: Wafna! Wafna! quid fecisti sors turpissima? nostre vite gaudia/abstulisti omnia! - Ai de mim! Ai de mim! que fizestes, execrável sorte? nos tomastes da vida/todos os prazeres!).

 

O Bom Homem bebe (sorve) o leite, sem pressa. Introduzo a escova de latão no cano da arma, fazendo movimentos de vai-e-vem, para raspar os restos de pólvora das raiaduras. Pingo duas gôtas de solvente, que descem pelo cano, sem pressa, como - adivinho - o leite na garganta do Bom Homem. Inverto a chave de desmontagem e extraio o conjunto slide-cano-mola.

 

A arma está desmontada. O Bom Homem, íntegro.

 

Gostaria de lhe deixar claro que vamos resolver tudo,  digo, novamente, a ele. “Veja o senhor”, diz, ignorando minhas palavras e me estendendo sua carteira de documentos, aberta, com fotos de duas crianças, “o menino e a menina são meus netos. O menino, principalmente, tem causado dores de cabeça ao meu filho. Quer andar andar se equilibrando nessas pranchas de fibra, sobre o mar: surf”, disse, com pronúncia americana, ou inglesa, sei lá, com o “f” de surf completamente mudo. “Minha casa fica triste quando eles não vão lá”, arremata. “Confio no senhor”, sentencia, sem finalizar o assunto dos netos, como se colasse uma frase  fora de lugar, num texto. Obrigado, digo, desviando o olhar e terminando de montar a pistola, já limpa. A ópera está no fim. São poucos minutos, ainda. Uma soprano e um barítono se alternam. (CARMINA BURANA: Veni, veni, venias, ne me mori facias - Vem, vem, ó vem, não me faças morrer).

 

Vejo, em minha mente, uma cena comum, de algum filme que vi: o tradicional cortêjo fúnebre no nevoeiro, uma carroça, um cocheiro de cartola, o caixão. Uma sugestão da mente. Afasto.

 

Toca o telefone. É o Teixeira. “Mixou. A merda está feita, o Xúber se foi. Agora é com você”. Como ´se foi´?, pergunto, nervoso. “Se foi, se indo, pôrra. Fizeram ele ir. Agora é com você”. Repetiu e desligou.

 

O painel do aparelho de som indica, no item timer, que escuto ao contrário, regressivamente ao invés de progressivamente, que faltam menos de dois minutos para o final da ópera. Retorna a Fortuna Imperatrix Mundi. (CARMINA BURANA:  Sors immanis/et inanis, rota tu volubilis,status malus, vana salus/ semper dissolubilis, obumbrata/et velata/michi quoque niteris; nunc per ludum/dorsum nudum/fero tui sceleris. - Sorte monstruosa e vazia, tu - roda volúvel - és má, vã é a felicidade/ sempre dissolúvel, nebulosa/ e velada/ também a mim contagias; agora por brincadeira/ o dorso nu/ entrego à tua perversidade.)

 

As coisas se tornaram muito difíceis, delicadas, digo para o Bom Homem. O senhor é um homem bom. “Desde que nasci”, diz, rindo amarelo pelo trocadilho com o seu próprio nome, com aquele humor culto e irônico, próprio dos judeus. Goodman.

 

O vento. O vento a me rasgar o peito e a me sufocar, sufoco por excesso, não por falta de ar. O olhar do bebê, opaco, para a vida. O pijama.

 

Vista algo decente, digo, desejando ter dito:  Vista algo digno. Veste, lentamente, sua calça de velho, camiseta, camisa, etc...

 

O senhor é um homem excepcional, falo. “Obrigado”, diz, demonstrando a dor de sabê-lo.  Abro-lhe a porta. Digo a ele que se vá. Vá, rápido, enfatizo. Ele, aliviado, sem pudor pelo alívio, suspira.

 

O vento. A Fraternidade Universal.

 

Vá, aponto o matagal nos fundos. Por ali, insisto.

 

Passa por mim, não me olha. Sai, sem pressa, tanto quanto é possível conter sua ansiedade por  respirar o ar da existência, lá fora. Está a cinco metros e pára. Súbito, se vira e me olha, com muita coisa no olhar ao mesmo tempo para que eu tenha condições de decifrá-lo. (Adivinho: campo de concentração/câmara de gás/forno crematório/Holocausto/sua família )

 

Se volta e continua em seu passo lento. Dez metros. Doze metros. Treze metros. Quatorze metros. Puxo, sem pressa, a pistola, limpa, que está às minhas costas, presa no coldre de couro com as minhas iniciais gravadas a fogo. Enquadro a alça, na massa de mira. Focalizo, a quinze metros, a nuca dele. Meu dedo está no gatilho, firme.

 

Tenho uma decisão a tomar. Por fim, executo aquilo que chamei de decisão.

 

Depois disso sinto que  o coro, o vento, se agitam em mim.

 

Visto uma jaqueta e saio, pela porta da frente.

 

Isso não é um filme.

 

Carmina Burana não é  uma mulher.

 

(Do livro O Coro do Vento)